sexta-feira, 29 de maio de 2020

O gol de Oldorelino

Oldorelino caminhava lentamente com suas pernas arqueadas. Eram arqueadas não por ele ter sido bom jogador de futebol na juventude. As pernas eram tortas como as de Garrincha por obra dos 75 anos de idade, das doenças dos joelhos e pelos trilhões de passos dados naqueles novecentos meses de vida.
Oldorelino, a princípio, não queria ingressar na grande cancha de futebol de campo, com seus cinquenta metros de largura e cem de comprimento. O campo estava vazio e solitário e fez Oldorelino pensar na frase de García Márquez que lera há pouco: "uma velhice feliz é um honroso pacto com a solidão".
Mas algo misterioso fez Oldorelino entrar em campo, mesmo sem uniforme, chuteiras, companheiros de time ou torcida. Ele lembrou que nunca fora bom jogador. Menino, aguardava, humilhado, ser dos últimos a serem escolhidos para a pelada na calçada. Muitas vezes era mandado para o gol ou para o banco de reservas. Perna-de-pau, ficava quieto, sabendo que de nada adiantaria reclamar.
No fundo o que fez Oldorelino entrar em campo foi uma velha bola, algo murcha, que estava perto da bandeirinha de escanteio. Ele foi até ela e conseguiu dar-lhe um chute. A bola ainda rolava. Meio devagar, mas rolava. Ele foi atrás dela e, com outro chute, aproximou a bola da goleira vazia. Antes de chutar a gol, resolveu ir chutando a bola até próximo da outra goleira.
Chutava e ia atrás, dando passes para si mesmo e gostando de ver que ainda podia bater uma bolinha. Num determinado momento resolveu fazer um longo lançamento para si próprio, em direção ao gol. Lembrou dos lançamentos de quarenta metros do tricampeão Gerson, aquele que levava vantagem em tudo e que depois ficou em desvantagem absoluta, quando foi promulgada a infeliz Lei de Gerson, que incrimina milhões de brasileiros até hoje.
Oldorelino foi caminhando até onde estava o balão meio murcho e chegou, animado, a apressar um pouco o passo. Nem achou estranho ter feito um lançamento para si. No gramado vazio, até podia. Lembrou do amigo Ruivo, que lançava a bola para si mesmo quando jogava futebol no Campo dos Cadetes, no Parque da Redenção. Lançar para si próprio, por que não? Quando os outros não dão a assistência ou quando o campo está vazio?
Ao chegar próximo da bola Oldorelino concentrou-se, colocou as mãos nos quadris, olhou fixo para ela e depois para a goleira deserta. Não podia errar. Queria chutar a gol e marcar. Foi o que fez, depois de alguns passos rápidos. Um chute certeiro mandou a bola para o fundo da rede, como deve ser.
Feito o antigo goleador Quarentinha, Oldorelino não comemorou o gol. Ficou impassível, diante do campo vazio e das arquibancadas solitárias como escolas nos domingos.
Mas ele sentiu-se feliz por dentro. Sorriu para dentro, pensou que ainda podia fazer gols, mesmo com bola meio murcha, especialmente em campos vazios, com invisíveis goleiros e zero jogadores e torcida. Ele não precisava de mais nada além daquilo.

Lançamentos

cult - livro entrevista com o vampiro, de anne rice
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REPRODUÇÃO/DIVULGAÇÃO/JC
  • Entrevista com o vampiro (Rocco, 320 páginas, R$ 54,90, tradução de Clarice Lispector)(acima), da consagrada escritora norte-americana Anne Rice, traz em nova edição, em capa dura, o melhor livro da autora, a rainha dos vampiros. Críticos consideram o livro a mais voluptuosa e sedutora história de horror de nosso tempo.
  • Ana e o Mundo do Avesso (Paulus, 32 páginas, R$ 25,00), da psicóloga, artererapeuta, educadora e escritora Mônica Guttmann, mostra Ana, uma menina esperta e sensível, que tenta descobrir qual seu lugar no mundo. Viaja até o Mundo do Avesso em busca de respostas, nem sempre fáceis de encontrar.
  • Migração e tolerância (Record, 96 páginas, R$ 29,90, tradução de Eliana Aguiar e Alessandra Bonrruquer), do genial italiano Umberto Eco, reúne quatro ensaios sobre temas atuais: "Eliminar o racismo não significa demonstrar e se convencer de que os outros não são diferentes de nós, mas compreendê-los e aceitá-los em sua diversidade".

A propósito...

Oldorelino pensou que nem todos na vida, só pouquíssimos, nascem com os dons divinos e reais de um Pelé. Mas pensou que não existiria Pelé jogando sozinho, sem os Coalhadas, os pernas-de-pau e os medianos que completam os times. O que seria do azul se todos gostassem do vermelho, pensou, lembrando a velha propaganda de tinta. Pensou que tem mais gente, no futebol, que gosta de vermelho do que de azul, mas que isto é normal. Os azuis são rivais e coirmãos simpáticos e, normalmente, valorizam as árduas vitórias dos vermelhos. Isso ao menos no passado. Oldorelino saiu do gramado feliz, pensando que ainda estava no jogo. No jogo da vida real, pelo menos. E nos jogos da imaginação e dos sonhos.
Jaime Cimenti

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