27 DE MAIO DE 2020
MÁRIO CORSO
A dança da morte
O cortejo fúnebre em Gana é diferente do nosso. Quando carregado, o ataúde pode ser acompanhado de música e dança. É uma celebração para homenagear o falecido. Existem profissionais que prestam este serviço. Recentemente, uma funerária de lá inovou e tornou esse rito ainda mais festivo. Essas imagens chegaram ao Ocidente e viralizaram.
Contrastando diametralmente com nossos costumes, as imagens chocam. Como, aos nossos olhos, as cenas parecem bizarras, foram usadas para fabricar memes na internet. Especialmente quando acrescentou-se a música eletrônica Astronomia, de Tony Igy. Tanto que hoje é impossível escutar a música sem lembrar do meme do caixão.
Um parêntese: na nossa tradição também existem elementos de negação da morte e celebração da vida, apenas eles são sutis. Por exemplo, não há morto que não leve flores no caixão. A flor é um símbolo feminino por excelência e, por extensão, da vida e da fertilidade. As flores preenchem com suas cores e odores as nossas lembranças das despedidas. Suavizam nossa dor com sua singeleza e como arquétipo antípoda da morte.
Os memes com o tema do caixão já faziam sucesso antes da pandemia, geralmente para lembrar que os irresponsáveis serão candidatos ao serviço funerário. Depois da pandemia, começaram as encenações privadas e públicas do meme. Vídeos familiares postados na internet, caixões desfilando na rua em manifestações políticas, até uma lamentável cena em um restaurante de Gramado.
Acredito que o cerne dessas manifestações funcionam como uma bravata que poderia ser assim resumida: nós não temos medo da morte. Vocês é que têm, eu sambo e zombo frente a ela. Nós somos corajosos, e vocês, umas galinhas.
Uma das formas de reagir frente a um adversário mortífero é zombar, desacreditar seu poder. Em outras palavras, transformar o medo em bravata. O preço é acreditar na encenação e ficar ainda mais vulnerável.
A questão é que o ato é como a palavra, metade de quem diz, metade de quem escuta ou vê. Portanto, encenar o meme do caixão se presta a um arco de mal-entendidos. Em um momento tão delicado, quando o placar da morte não cessa de subir, a brincadeira pode soar como um deboche frente à dor alheia, um acinte de mau gosto.
Alias, me escapa em que contexto isso seria de bom gosto. Tempos de morte e luto são para empatia e compaixão. Caros dançarinos fúnebres locais, inventem uma forma mais adulta de aliviar seus medos.
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