30 DE MAIO DE 2020
ARTE
"O grito" pede distanciamento
O Grito, quadro do pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944), também precisa de distanciamento como o imposto pela pandemia do novo coronavírus. É o que indicam cientistas que passaram três anos investigando a perda de brilho e intensidade da tinta amarela usada na versão do Museu Munch, em Oslo (Noruega), pintada em 1910.
Uma das hipóteses é que a luz estivesse desbotando o quadro. Mas, após rastreá-lo com equipamentos especiais, analisar as tintas do pintor norueguês e submeter simulações de suas misturas a diferentes condições de luz e umidade, 18 pesquisadores de sete países (Noruega, Itália, EUA, Bélgica, França, Alemanha e Brasil) descobriram outro fator: nas faixas amarelas do pôr do sol, no pescoço do homem que grita e na massa espessa do lago, Munch usou uma tinta com pigmentos impuros, que, sob umidade, como a exalada pela respiração humana, sofre transformações químicas e descama.
- Ter multidões na mesma sala da pintura não é bom - diz a especialista norte-americana Jennifer Mass, que participou da investigação.
Além de umidade, as pessoas exalam cloretos quando respiram, segundo o professor de Física da Universidade de Antuérpia Koen Janssens, outro integrante do grupo:
- Para pinturas em geral, não é saudável estar muito perto da respiração humana.
Pelo Museu Munch passam 250 mil visitantes por ano, mas O Grito foi raramente exposto desde 2006, quando voltou para casa depois de ter sido roubado por dois mascarados em 2004. A pintura recuperada voltou com manchas de água no canto inferior esquerdo e, para evitar mais desgastes, ficou armazenada sob baixa iluminação, a 18ºC e umidade relativa de 50%. Após o resultado das pesquisas, deve ganhar instalações ainda mais secas, de no máximo 45% de umidade, segundo Irina Sandu, cientista de conservação do museu.
Tintas instáveis como a usada por Munch eram comuns no fim do século 19 e no começo do 20, porque sua durabilidade não havia sido testada. A fabricação era experimental, impulsionada pela descoberta de pigmentos sintéticos que permitiam paletas mais vibrantes do que as das tintas de então - feitas à base de minerais moídos ou corantes extraídos de plantas e insetos. Populares entre artistas modernistas, pós-impressionistas e expressionistas, as cores contrastantes, saturadas e com variações de brilho na superfície, eram perfeitas para a cena que o pintor norueguês queria representar.
"Andava de noite numa estrada. Estava cansado e doente. Fiquei olhando para o outro lado do fiorde; o sol estava se pondo; as nuvens estavam vermelhas - como sangue -, senti como se um grito passasse pela natureza. Pensei ter ouvido um grito. Eu pintei essa imagem. Pintei as nuvens como sangue real. As cores estavam gritando", descreveu Munch, segundo o historiador Arne Kristian Eggum, que estuda sua obra.
Entre 1893 e 1916, o pintor fez várias versões de O Grito, em tinta e pastel, desenhos, esboços e litogravuras, além dos quadros que estão Museu Nacional da Noruega (de 1893) e no Museu Munch (1910).
Na procura pelas cores gritantes, experimentou diversos pigmentos até chegar no amarelo de cádmio que desvaneceu. Os cientistas descobriram o problema exato: havia cloretos na tinta usada por Munch. Sob umidade, essa impureza acelera a deterioração. As pinceladas no céu nublado do pôr do sol e na figura central ficaram esbranquiçadas. No lago, a massa de tinta descamou.
A descoberta envolveu várias estratégias de pesquisa em diferentes laboratórios europeus e visitas a Oslo. Numa delas, o físico nuclear brasileiro Renato Pereira de Freitas, 37 anos, e uma equipe do italiano Molab, referência na análise de obras de arte, pegaram um avião em Perúgia (Itália) em um domingo à noite de 2017, levando desmontado numa mala um sofisticado equipamento de mapeamento molecular. Como em um raio X, ele detecta os elementos químicos da obra sem danificá-la, diz Freitas, que ajudou a mapear o cádmio e o cloro no quadro de 83,5cm por 66cm, de têmpera sobre cartão.
Para Janssens, Munch deve ter usado por acidente uma tinta de menor qualidade. O sulfeto de cádmio amarelo é obtido pela reação entre cloreto de cádmio e sulfeto de sódio; numa indústria ainda incipiente, pode ter sido incompleta ou feita de forma negligente.
Descoloração e descamação do mesmo pigmento também foram documentadas em obras de Matisse, Ensor e Van Gogh. Nesses casos, a luz era o principal fator. A degradação não pode ser revertida, mas o conhecimento dos processos que levaram a ela permite uma volta digital ao passado, reconstruindo as cores originais, diz Janssens.
No Brasil, a investigação também terá consequências. De volta ao país após terminar o pós-doutorado, Freitas comprou um equipamento de mapeamento para o Instituto Federal do Rio de Janeiro, o que permitirá estudar obras brasileiras com a mesma técnica.
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