23 DE MAIO DE 2020
DAVID COIMBRA
Vingança na quarentena
- Te prepara - ela avisou, os olhos chamejando de ódio vermelho. E, depois de abaixar a voz, como se falasse consigo mesma, anunciou, entre dentes: - Eu vou me vingar. Ele estremeceu. Sentiu que ela falava sério. Não era uma ameaça vã: ela ia se vingar.
- C-como assim? - gaguejou. - Te prepara! - ela repetiu. E trancou-se no quarto.
Maldito coronavírus! Maldito chinês comedor de morcego! Se não fosse a quarentena, ela não descobriria seu pequeno deslize. Havia sido pequeno mesmo, minúsculo, uma única vez com uma colega, uma noite antes do confinamento. Uma aventurinha, pra que fazer caso com isso?
Até então, a colega havia sido discreta. Mandava algumas mensagens por Whats, nada mais. Só que, um dia, eles tiveram de fazer uma reunião online, e ela comentou, quando a imagem dele apareceu na tela do computador: - Que bom te ver. Estava com saudade...
Só isso. Mas foi o que bastou. A mulher dele ouviu lá da cozinha, desconfiou e, na primeira oportunidade, vasculhou seu celular. Encontrou uma ou duas mensagens comprometedoras, pressionou-o e ele, como se estivesse sentado na saleta de interrogatórios da Polícia Federal, confessou:
- Foi só uma vez. Juro. E não tem importância nenhuma... Mas não adiantou. Ela jurou: - Eu vou me vingar.
E agora estava lá, trancada no quarto, enquanto ele batia na porta e implorava:
- Abre, amor... Abre... Vamos conversar...
Ela não abria nem respondia. Ficou em silêncio por mais de uma hora. Quando finalmente abriu a porta, ele levou um susto: ela estava toda arrumada, equilibrada sobre saltos altíssimos, dentro de uma minissaia curtíssima, os cabelos soltos, toda pintada, a boca carmim, os olhos faiscando. Estava linda, ele tinha de admitir. Linda.
- O que é isso? - ele perguntou, aflito. - Vou sair. - Sair? Como assim? Na quarentena? Vai aonde?
Ela não respondeu. Marchou em direção à garagem, ondulando feito a serpente do Jardim do Éden. Ele a seguia e gritava:
- Espera! Espera! Vamos conversar! Eu te amo! Vamos conversar!
Ela continuou muda, muda entrou no carro e muda se foi, desaparecendo no escuro da rua, enquanto ele corria atrás, aos berros: - Não! Não! Eu te amo!
Voltou para dentro de casa com o coração batendo na garganta. Para onde ela teria ido, vestida daquele jeito? À casa de um amante? Será que ela tinha amante? Não... claro que não... Ela era uma mulher fiel. Mas agora... Depois de saber que havia sido traída... Agora... Ela ia se vingar! Ia arrumar outro! Mas quem? Quem estaria disponível na quarentena?
Ele começou a pensar nos amigos e nos conhecidos. Estremeceu ao lembrar de um colega de trabalho dela, um fortão, um maldito rato de academia. Eles o encontraram na praia, no verão. O cara estava sem camisa, tinha grandes bíceps e pequena barriga. Ele viu que ela olhava para o peitoral do desgranido enquanto conversavam. Ela o procuraria, óbvio. O cara era solteiro, não a rechaçaria de jeito nenhum. Além disso, ela estava sedutora naquela minissaia, qualquer homem a desejaria. Oh, não! NÃO!
Ele ligou para o celular dela. Em vão - estava fora do ar. Começou a mandar mensagens: "Te amo. Volta pra casa, por favor. Vamos conversar". Enviou mais de 20 mensagens. Ela nem sequer leu. Ele caminhava de um lado para outro da casa feito um tigre na jaula, sem saber o que fazer. Finalmente, correu para a garagem, pegou o carro, saiu, cantando pneu. Não tinha ideia de onde ela podia ter ido. Não havia bares abertos, a cidade estava sob isolamento. Ela devia ter ido à casa de alguém. Mas quem? Decidiu rodar a esmo pela cidade, para ver se encontrava o carro dela. Foi o que fez. Percorreu praticamente todos os bairros, rondou motéis, foi ao Centro, e nada. Nada. Se ao menos soubesse onde morava o rato de academia...
Depois de horas, voltou para casa com a tênue esperança de que ela tivesse retornado. Entrou correndo, chamando por seu nome, foi ao quarto. Nada... Ela estava se vingando naquela hora. Bem naquela hora. Imaginou-a nos braços do fortão, imaginou-a sendo possuída, gemendo:
- Meu marido não faz assim...
CRISTO! Atirou-se na cama de bruços. E chorou. Chorou feito uma adolescente rejeitada.
- Eu sou um corno! - uivava. - Um corno!
Ele não dormiu naquela noite. Ela, sim. Dormiu um sono sereno, acordou bem disposta, tomou um banho e sentou-se à mesa do café. Olhou para os pais, que a encaravam com certo estranhamento:
- Não contem pra ele que dormi aqui, certo? - Certo - concordou a mãe. - Certo - concordou o pai.
Então, ela voltou para casa. Chegou perto das 10 horas. Abriu a porta e o viu de pé, no meio da sala, descabelado, com olheiras, roto como um mendigo. Ele caiu de joelhos a seus pés.
- O que você fez? - berrou. - O que você fez?
- Me vinguei - ela disse e, antes de rumar para dentro da casa, acrescentou: - e não me pergunta nada, se quiser que eu fique. Nunca mais quero falar nisso.
Ele obedeceu. Nunca mais perguntou nada sobre aquela noite. Mas a vingança ainda dói. Como dói.
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