16 DE MAIO DE 2020
MÔNICA SALGADO
Rotina de quarentena
Acordei com uma cachorra me lambendo. Merda, esqueci de colocar o despertador! Esquecer no sentido de "tive um lapsozinho de memória, sabe como é, cabeça cheia" pode não ser a palavra mais apropriada, uma vez que entornei uma garrafa do vinho tinto mais barato que entregava pelo iFood enquanto tentava terminar de ver O Irlandês. Sim, eu sei, com considerável delay em relação ao restante da humanidade, e daí?
A coisa foi tão feia que sequer lembro se terminei ou não de ver. Nada que um "continue de onde parou" não resolva. Bem, de qualquer forma, dormi com as lentes de contato. O que é sempre péssimo sinal. Odeio dormir de lente e, se não as tirei, é porque estava mesmo em estado cremoso, se é que me entendem. Qualquer dúvida que tinha se dissipou quando senti aquele peso cerebral, sabem como? Popularmente conhecido como ressaca? Nada que um Vonau + Sumax não resolvam. Agora meus olhos ficarão secos e pesados ao longo do dia. Nada que um Fresh Tears não resolva.
Pego o celular para ver as horas. No caminho, derrubo o copo d?água que também repousava em cima da mesinha lateral. Desta vez o "merda!" foi em alto e bom som. Marido bufou, virou de lado, puxou violentamente o edredom. Bingo: são 6h30min. A Malu Quinha é mesmo um relógio suíço. É hora de seu café manhã, e ela não tolera atrasos.
Engulo minha fluoxetina a seco. Deixo minha filha me lamber mais um pouquinho - e, neste momento, eu perco metade dos meus leitores... e a outra metade pensa "eu também deixo, mas jamais escreveria isso num jornal de grande circulação". O mundo anda polarizado mesmo.
Levanto e piso de meia na água derrubada. "M...!", engulo as outras quatro letras junto com a fluoxetina que ainda não desceu por completo. Nada que um litro de café preto não resolva. É a quantidade necessária pra ressuscitar pós-orgia-alcoólica.
Banheiro. Dente. Fresh Tears. Xixi. E... surpresa! Desceu. Com aquela intensidade que faria o Vesúvio em atividade corar de vergonha. E o "corar" aqui foi um tanto infeliz, desculpem. Vendo pelo "copo meio cheio", é o fim da TPM. Você já estava prestes a gastar sua condição de ré primária com o marido e com o vizinho DJ que faz lives semanais - não, não é o Alok, não tenho essa sorte. Mas nada que um bom advogado não resolvesse...
No caminho para a cozinha, atenção! De manhã, a casa vira um campo minado. Montinhos de fezes perfumam o ambiente e enfeitam o tapete novo como uma obra de arte abstrata feita com material inusitado - tipo Pollok encontra Vik Muniz. Nada que muito papel toalha e esfregação com um mix caseiro de vinagre, álcool e bicarbonato não resolvam. Pelo menos até a manhã seguinte.
Cachorras alimentadas, fluoxetina fazendo efeito, cafeína a mil e louça (que brotou inexplicavelmente na calada da noite) lavada, chega aquela hora. "Aquela" hora, mães da quarentena que estão aqui me lendo (a metade que sobrou, que deixa os cachorros lamberem, mas não escreveriam isso). A tão esperada hora do home schooling! Obviamente, contém ironia.
Ensinar um filho de nove anos pode ser mais desafiador do que correr uma maratona. Sem a parte da endorfina e da sensação de dever cumprido. São muitas emoções experimentadas em duas horas: animação, frustração, raiva, resistência, resignação, explosão e eventual desistência. "Que se dane porque ninguém tá aprendendo nada nessa porra mesmo, e daí se perderem um ano, quem se importa com a Tabela de Pitágoras num mundo em pandemia?"
Termina a sua parte, e a professora assume na videoaula. Você espia pela porta. Precisa entender como ela consegue. E se dá conta de que ela não consegue. O João Pedro insiste em posicionar o headphone na saída de ar do seu nariz, de modo que a aula segue ao som ritmado dos "puffs" da respiração dele. A Julia não espera a vez dela de falar. O Teo fica teclando no chat, apesar dos apelos da docente para que não distraia os colegas. Você fica tão solidária à professora que decide mandar um reiki a distância.
Então nota que seu filho está vendo vídeos no Youtube pelo celular embaixo da mesa. Esquece as boas vibrações do reiki e manda um palavrão. Se arrepende. Nada que uma tacinha de vinho não resolva. Você percebe que são 10h30min. Faz uma mimosa e toma sem culpa. Afinal, ainda tem o dia todo pela frente. Nada que saúde e estar com quem amamos não resolva. Até amanhã.
MÔNICA SALGADO
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