sábado, 23 de maio de 2020



23 DE MAIO DE 2020
LIVRO - Psicanalista e jornalista

UMA CARTA ANTIGA, mais atual do que nunca

COM ENSAIOS, TESTEMUNHOS E FICÇÕES, VOLUME RECÉM-LANÇADO COMPILA RESPOSTAS DE ESCRITORES E PSICANALISTAS À CÉLEBRE MISSIVA DE 1935, NA QUAL FREUD RECHAÇAVA A CURA GAY

Em 2017, a decisão de um juiz de Brasília causou grande comoção por abrir uma brecha para autorizar terapias de reorientação sexual - a famigerada "cura gay". Naquelas discussões travadas na arena virtual, circulou uma carta supostamente escrita por ninguém menos do que Sigmund Freud, fundador da psicanálise, endereçada a uma mãe que lhe pedira conselhos sobre como lidar com a homossexualidade de seu filho. Em poucas linhas, Freud a tranquilizava, informando que não se tratava de doença, nem motivo de vergonha, portanto, não havia nada o que curar.

Não é fake news: a carta realmente foi escrita por Freud, em 1935. Porém, só chegou a público anos depois, através do sexólogo norte-americano Alfred Kinsey, a quem aquela mãe a havia reenviado. Assim como Freud, Kinsey em muito contribuiu para levantar o véu de moralismo e hipocrisia que encobria a sexualidade no início do século passado. Ambos revelaram que, no que tange à sexualidade humana, os desvios costumam ser a norma, pois sua função vai muito além de atender a meros fins reprodutivos.

Que essa carta tenha ressurgido nos dias atuais é significativo: se foi necessário pedir ajuda a quem, quase um século atrás, ajudou a lançar luzes sobre um tema obscurecido por medos e preconceitos, é porque os avanços talvez não foram tão grandes quanto se havia imaginado. Ou, pior ainda: que as poucas, mas importantes conquistas - legais, sociais - se encontram sob ameaça, como tem sido possível acompanhar na escalada de discursos discriminatórios e violentos, disfarçados de defesa da moral ou direito à opinião. Como lembra o psicanalista Marco Antonio Coutinho Jorge, nada está definitivamente conquistado nesse âmbito, no qual medo e moral amiúde se unem, causando de microviolências cotidianas a atrocidades institucionalizadas.

A atualidade da carta de Freud motivou o psicanalista e filósofo Gilson Iannini a organizar Caro Dr. Freud - Respostas do Século XXI a uma Carta sobre Homossexualidade, recentemente lançado pela editora Autêntica. Convidou 23 autores, muitos dos quais psicanalistas, a escrever respostas, como se fosse a eles que aquela carta de Freud tivesse sido endereçada. A maneira como o convite foi recebido por cada um e a forma como a resposta foi redigida é diversa e plural - como são as vozes de seus autores.

Entre os textos, podemos ler o tocante testemunho da psicanalista transexual Letícia Lanz, no qual narra os efeitos deletérios do preconceito ao longo de sua vida. Ou a ficção de Guacira Lopes Louro, estudiosa de gênero que convida a pensar em como a família de antigamente, idealizada nos dias de hoje, também carregava suas contradições e sofrimentos. Encontra-se também a missiva de Adilson José Moreira, que faz da mãe da carta de Freud uma mulher negra da periferia, convocando a refletir sobre violências bem brasileiras, como o racismo estrutural que nos funda como sociedade e indivíduos.

Um ponto que se destaca em várias das cartas é uma dura crítica endereçada à psicanálise e, sobretudo, aos psicanalistas. Na própria carta de Freud, a despeito do que disse à mãe aflita, afirma-se que a homossexualidade seria fruto de uma "detenção no desenvolvimento sexual", podendo dar a entender que seria um déficit. Vários autores lembram que, contrariando Freud, houve muitos psicanalistas que consideravam a homossexualidade um desvio ou perversão, utilizando a teoria para camuflar (mal) seu preconceito e, com isso, trazendo ainda mais dor e repressão àqueles que buscavam alívio para seu sofrimento. Houve muitos psicanalistas que praticaram a cura gay - ou melhor, tentaram curar algo incurável, pois não é uma doença.

Pode parecer anacrônico, mas essa é ainda uma prática corrente por parte de alguns profissionais e escolas psicanalíticas - o que revela o quanto medo e moralismo, quando não têm suas raízes inconscientes analisadas, seguem causando graves danos, ocultando-se sob nobres disfarces. Que caiba no livro essa (auto)crítica é um ato de responsabilidade e coragem, sobretudo em tempos em que nós, psicanalistas, temos de defender nossa prática, que é leiga e plural desde sua fundação, de tentativas de controle por parte de grupos cujas intenções são, no mínimo, suspeitas.

PAULO GLEICH

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