15 DE ABRIL DE 2019
PATRIMÔNIO
Um pedaço da história da Capital renasce na fachada do Presidente
SEISCENTAS MIL PASTILHAS reproduzem originais do antigo cineteatro, que hoje abriga empreendimento
Dois anos atrás, quando o prédio do antigo Cine Teatro Presidente, na Avenida Benjamin Constant, em Porto Alegre, foi cercado por tapumes, uma pichação em tom de desabafo chamou a atenção dos investidores do empreendimento prestes a ser erguido no local.
- Alguém escreveu no tapume: "Deixem o patrimônio histórico em paz". Vimos que tinha gente que pensava que o prédio ia abaixo - recorda Enio Pricladnitzki, sócio-diretor da Wikihaus Inc.
Ao contrário de outras edificações antigas da Capital, o prédio histórico não corria risco de ser demolido. É considerado patrimônio histórico pela prefeitura. O lugar padecia em situação degradante até ser assumido pela incorporadora, que se apressou em esclarecer o mal-entendido, afixando uma placa na fachada onde informava que, na verdade, a edificação passaria por restauração - um novo empreendimento seria construído dentro do antigo imóvel. Os tapumes pichados foram substituídos por outros.
Literalmente caindo aos pedaços, a fachada colorida de um dos mais emblemáticos cinemas de rua de Porto Alegre passou por processo de recuperação minucioso. Sem condições de aproveitar o material original, os empreendedores fotografaram a estrutura e enviaram as imagens digitalizadas para uma empresa de São Paulo que ficou responsável por reproduzir 600 mil pastilhas idênticas às que costumavam adornar o exterior do local, fechado na década de 1990. As novas foram agrupadas em pequenas placas e enviadas à Capital com as indicações para a sua instalação.
O que se seguiu foi uma espécie de batalha naval ao contrário: durante dois meses, operários montaram os quebra-cabeças baseados em coordenadas. A principal diferença entre o processo que se deu no edifício da década de 1950 e o jogo famoso foi o resultado, que, em vez de submergir, trouxe à tona um pedaço da história de Porto Alegre que poderia ter se perdido no tempo.
- Consegue ver o prédio que está atrás? Não, né? A gente fez para não ver mesmo - brinca o engenheiro Alexandre Almeida.
Atrás da fachada repaginada do Cine Teatro Presidente está em fase final o empreendimento de mesmo nome que deve ser concluído até setembro. O prédio, com 58 apartamentos e 13 pavimentos, será um coliving, um tipo de moradia com dimensões modestas - cada unidade tem cerca de 35 metros quadrados - e foco nas áreas compartilhadas.
Para realizar a obra no imóvel inventariado, a Wikihaus teve de atender algumas exigências específicas da prefeitura, entre elas preservar sua proporção e recuar em 10 metros a nova construção, de modo que não atrapalhasse a vista do edifício protegido. É preciso atravessar a rua para enxergar o prédio novo, cuja construção transformou o empreendimento Cine Teatro Presidente em objeto de estudos acadêmicos.
PRÉDIO IMPLANTADO DENTRO DE OUTRO
Sem ter como acessar a área com caminhões e máquinas de grande porte, como ocorreria em uma obra feita em terreno vazio - o Presidente ocupa 100% da área -, o processo de demolição teve de ser adaptado. Levou cerca de um ano, entre espaços que tiveram de ser quebrados à mão e outros que contaram com o auxílio de guindaste (como o telhado, que exigiu o içamento de uma máquina pela Avenida Benjamin Constant). Durante três meses, a obra foi paralisada para a retirada de vigas que impediam o prédio de subir.
- Desde que esse lugar foi comprado, o potencial de intervenção urbana foi o que nos motivou. A gente só não sabia o trabalho que ia dar - sorri Almeida.
Para facilitar o acesso ao local e diminuir os transtornos na avenida, os empreendedores alugaram um terreno localizado atrás do prédio antigo. A obra iniciada há dois anos consistiu em, basicamente, implantar o novo edifício dentro do antigo. O pé direito imponente do cineteatro permitiu que a área fosse dividida em cinco pavimentos, três deles destinados a vagas de estacionamento - o térreo terá duas lojas, e o quinto andar, algumas unidades dos apartamentos. Quem deixar o carro no segundo pavimento deve deparar com a linha em diagonal da plateia de onde se viu, entre outros famosos, o último show de Cazuza na Capital.
PROJETO COM O AUXÍLIO DA COMUNIDADE DO BAIRRO
No interior do empreendimento serão poucos os vestígios do cinema abandonado. Duas cadeiras e um projetor passaram por restauração e devem ficar expostos no hall de entrada. Um par de ganchos cuja função é um mistério junto à área que agora leva uma piscina também foram mantidos.
O Cine Teatro Presidente é o primeiro projeto da Wikihaus com conceito retrofit - como é chamada a modernização de prédios antigos. Para concebê- lo, a incorporadora realizou dois workshops: um deles voltado ao público-alvo do empreendimento (jovens entre 20 e 30 anos) e outro com influenciadores. Todos conheceram o projeto prévio e deram opiniões sobre o trabalho antes do início.
Os palpites foram desde a infraestrutura do coliving - que deverá contar com coworking, churrasqueira, lavanderia, academia, horta e bicicletas compartilhadas, entre outras áreas comuns - até a relação do prédio com o entorno. A expectativa era de que o lugar abandonado, que teve fios elétricos e outros objetos saqueados, e onde dormiam pessoas em situação de rua, voltasse a trazer movimento e, consequentemente, segurança para a região.
Conforme os empreendedores, várias das sugestões foram levadas em consideração. Nem todas, no entanto, mostraram-se viáveis da forma como alguns dos entrevistados sonhavam.
- As pessoas queriam uma área verde. Era impraticável, porque o prédio ocupa 100% do terreno e tínhamos de manter a estrutura. No fim, usamos a parte do recuo e fizemos um terraço gramado - explica Prikladnitzki.
BRUNA VARGAS
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