23 DE ABRIL DE 2019
CARPINEJAR
O cobertor do sofá
Casal que se ama preserva um cobertor predileto, destinado ao inverno inventado do sofá. É a lã mais valiosa do relacionamento, o pulôver usado a dois.
A cena é reincidente. Intoxicado da preguiça do final de semana, jiboiando do almoço, o par se deita despretensiosamente para assistir televisão na sala, indeciso entre a sesta e a distração.
Ambos gostam da solidão, vão se sentindo à vontade e com friozinho. Um, mais disposto, decide coroar o silêncio e a cumplicidade e vai até o alto do armário do quarto buscar a coberta.
Ele arrasta o pertence, como se fosse um manto de um rei ou a cauda de uma noiva. Varre o chão de felicidade. A peça não tem valor nenhum, costuma ser velha. Mas é de estimação, exala apego e acolhimento.
Ela já foi bandeja de sessão de filmes com vasilha de pipoca. Ela já foi pano de prato gigante para isolar a quentura da panela de brigadeiro. É uma cabana para beijos, é uma lona do acampamento dos melhores colos.
Oferece o cheiro divertido e doce do casamento. O cheiro da pele descansando. O cheiro da tarde sem nada para fazer. O cheiro do amor.
O casal se enrosca como cachorros em sua cauda, como gatos em suas patas. Dobrado, confortável, ninguém se mexe para não interromper o transe. Formam um bloco só de ternura, um quebra-molas de pernas e braços emendados.
Se a conchinha acontece na cama, ali é a hora do montinho.
Eu e Beatriz mantemos o nosso cobertor xadrez. Nossa tenda cotidiana de milagres. Ninguém sabe de que vó veio, do meu lado ou do lado dela. Foi alguma herança anônima familiar, sem apontamentos de inventário.
Nunca lavamos, nunca estragamos a sua fragrância caseira, jamais o substituímos por qualquer edredom. O sofá cinza pede o cobertor xadrez que lembra todos os momentos bons que experimentamos com a dupla imbatível, naquele cantinho simples da casa.
Ronronamos de satisfação - ronronar é o casamento do suspiro com o gemido.
Sentimo-nos protegidos, abrigados pela longevidade da relação, naquele item adicionado ao enxoval por usucapião. É a nossa capa da invisibilidade, em que desaparecemos para o mundo para nos dedicarmos um ao outro.
CARPINEJAR
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