sábado, 26 de dezembro de 2015



27 de dezembro de 2015 | N° 18397 
CARPINEJAR

Casamento das cinzas


O amor é insuportavelmente misterioso. Você jura que viu tudo, mas descobre uma nova cena que desconcerta a razão e combate o pessimismo dos relacionamentos.

Cada vez mais vejo que não sei nada sobre o assunto, sou um menino contando as estrelas até cansar. Minha astrologia é o brilho do olhar repercutindo a cintilação dos astros.

Não me fio na ciência exata. Amor, para mim, é como a humildade da lua, o que era minguante um dia se transforma em balão amarelo e cheio na madrugada.

Eu me deslumbro com a poesia dos gestos, pois o romantismo finou para quem não se entregou a fundo para alguém: ficou na metade das palavras por dizer, cansou no calor de uma briga ou no frio do punhal de uma discordância, desistiu de insistir antes dos laços consolidados.

Chega um momento em que o amor e a fé se encontram, e se tornam uma única matéria, inquebrantável. Quando é somente amor, pode acabar. Amor sozinho não faz casamento. O amor também precisa casar. O amor é o noivo da fé.

Aconteceu em Porto Alegre. Antes de morrer, ele pediu para sua esposa de três décadas para ser cremado.

Ela questionou, procurando compreender o seu capricho: – Onde jogo as cinzas? – Espera! Deixa as cinzas com você. Não arremessa em nenhum lugar. Eu quero lhe esperar.

– Como assim? – Só aguento morrer se você me prometer que as nossas cinzas vão casar no futuro.

Depois de 15 anos de viuvez, ela também faleceu e deixou uma curiosa e inquietante carta aos filhos:

“Desejo ser cremada, junte as minhas cinzas com as cinzas de meu marido, que estão na cômoda do quarto, e celebrem o nosso casamento do pó em Rio Pardo, onde nos conhecemos. Prepare um altar, traga as nossas alianças, chame um padre, convide a família. Em vez da chuva de arroz, será uma chuva alegre de nossa fidelidade. Estaremos misturados no ar, enamorados, assim como passamos a vida inteira. Ninguém definirá o que é o meu corpo e o que é o corpo dele. Seremos uma nuvem gris cobrindo o céu dos nossos amigos, passeando pelas cabeças dos netos, voando, voando.”

Eu já tinha testemunhado com assombro casais festejando bodas de ouro, de diamante e de vinho, casais nonagenários beijando na boca, casais velhinhos renovando os votos, mas jamais presenciei uma história igual, do amor enganando a morte, do incrível matrimônio das cinzas de dois apaixonados.

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