quinta-feira, 31 de dezembro de 2015



31/12/2015 e 01/01/2016 | N° 18401 
MOISÉS MENDES

O Centro


Agora que a ameaça de golpe está se afastando, posso contar o que conversei há uns dois meses numa mesa com um grupo de amigos. Especulávamos sobre o provável cenário depois de um golpe, quando alguém lançou a pergunta:

– Para onde fugiriam os considerados inimigos da pátria pelo novo regime, como aconteceu em 64?

Claro que a mesa estranhou: que regime, cara- pálida, se dizem que o golpe seria democrático, um golpe político, civil, sob a liderança do Eduardo Cunha e do Zé Agripino?

O formulador da questão insistiu. O filósofo Roberto Romano, colunista da Zero, já advertiu: “Um golpe de Estado seria uma tragédia, mas, infelizmente, não é impossível”.

Então, se houvesse um conluio civil-militar, como o de 64, onde se esconderiam os denunciados como adversários da paz, da ordem e da família brasileira?

Sugeri que fugissem para o centro de Porto Alegre. Que se misturassem ao povo que circula pelo Centro atrás de uma linha de crochê que só tem ali, ou de uma agulha que desentope boca de fogão, ou de uma liquidação de splits.

Tenho atração pelo Centro, por onde andei na terça-feira. Me sinto tentado a entrar em todas as galerias e lojas. Entrei em lojas de tecidos (descobri que há toalha de plástico importada), de lâmpadas, de conserto de óculos, de compra de ouro, de bijuterias.

A melhor coisa para sair de dentro do Facebook e entrar na vida real, pública e coletiva, é andar pelo Centro. Ser abordado por ciganas. Levar encontrão de um guri carregando caixas de sapatos na Voluntários. Sentir ao longe o cheiro do Mercado Público.

Na terça, fui fazer um exame de vista no consultório do doutor David Raskin. O doutor Raskin é o autor de Três Deuses e uma Trindade (Age Editora), publicado em 2008. É uma abordagem das religiões monoteístas – o judaísmo, o islamismo e o cristianismo, na provocativa linha do “não foi bem assim”.

Conversamos sobre religião, ética, política. David e Moisés falando de Cristo, do presumível pai dele e das confusões que ele provocou. Depois de uma hora, me despedi e, quando já estava saindo, voltei e sentei ao me dar conta de que não havia consultado.

Esse é o Centro. O único lugar de Porto Alegre onde você sai para fazer um exame de vista e participa de um debate, porque o oftalmo pode ser Raskin e perscrutar o fundo do olho e da mente do paciente.

Esse Centro de múltiplas faces seria um bom lugar para alguém se esconder de um golpe brabo. Mas nem o Eduardo Cunha acredita mais em golpe. Talvez, o Zé Agripino e o Bolsonaro. Agora, imagine ter que fugir de um regime inspirado nas ideias dos mais medíocres golpistas de todos os tempos.

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