23 de dezembro de 2015 | N° 18394
PAULO GERMANO
A verdade que nos convém
Tentava ouvir com atenção três histórias simultâneas, todas de amigos agitados que falavam ao mesmo tempo no restaurante, um deles traumatizado por mais um assalto em Porto Alegre, outro choroso porque fora demitido, o terceiro berrando contra o governo corrupto. Que ano foi esse?, perguntei a mim mesmo, e então lembrei do economista Steven Levitt.
Autor do best-seller Freakonomics, Levitt recebeu em 2003 a cobiçada Medalha Clark, concedida sempre ao economista com menos de 40 anos que mais contribui para a profissão. O que ele fez foi elaborar perguntas sobre temas que angustiavam a sociedade americana e, depois, oferecer respostas que frequentemente desafiavam a “sabedoria convencional”.
Também é possível chamá-la de lugar-comum, mas a sabedoria convencional costuma associar a verdade à conveniência. Quer dizer, as pessoas tendem a aceitar como verdade visões confortáveis, descomplicadas, que convivam em harmonia com seus credos e valores. E poucos assuntos são tão propensos às sabedorias convencionais como as causas da criminalidade – que Steven Levitt decidiu contestar.
Façamos um breve retorno aos anos 1990, em seguida voltamos para cá. Naquela época, a escalada do crime nos Estados Unidos era aterradora. Qualquer gráfico que ilustrasse o aumento de roubos e homicídios em qualquer cidade americana parecia uma montanha crescendo sem parar. A população vivia acossada, o estupro nunca fora tão comum, Nova York era um símbolo mundial de metrópole violenta, e as previsões de analistas eram as piores possíveis.
– Sei que tenho seis anos para reverter a escalada do crime – disse o presidente Bill Clinton. – Ou nosso país vai mergulhar no caos, com meus sucessores apenas tentando manter vivos nas ruas os habitantes de nossas cidades.
Era feia a coisa.
Só que, repentinamente, os índices começaram a baixar. Em vez de continuarem subindo, como projetavam os especialistas, todos os crimes passaram a despencar em todas as cidades dos Estados Unidos. Incrível: em 2000, a taxa nacional de homicídios atingiria seu menor nível em 35 anos. Que diabos era aquilo?
Logo vieram os analistas e, com eles, a sabedoria convencional. O acelerado crescimento econômico, as leis de controle sobre as armas, a política de tolerância zero em Nova York, tudo isso foi apontado como razão para a inesperada queda da violência americana.
Mas o economista Steven Levitt não se convencia. Algo não fechava, era impossível que interpretações tão óbvias explicassem uma reviravolta tão ilógica. Após anos de estudos e cruzamento de dados, Levitt concluiu que a maior causa para o recuo do crime foi uma mudança na legislação ocorrida duas décadas antes. Em 1973, o aborto havia sido legalizado nos Estados Unidos. Como as mulheres que se utilizaram da lei eram, na imensa maioria, solteiras, adolescentes e pobres – e para elas o aborto ilegal, anos antes, seria muito caro ou inacessível –, mais de um milhão de crianças que nasceriam em um ambiente familiar apontado como adverso deixaram de nascer.
E, se o ambiente familiar adverso é uma comprovada porta de entrada para o banditismo, seria natural, segundo Levitt, que duas décadas depois – quando essas crianças não nascidas atingiriam a idade do crime – a violência começasse a cair.
Steven Levitt foi execrado pela direita, por ter atribuído ao aborto uma conquista da sociedade. E foi execrado pela esquerda, por ter associado criminalidade a pobreza. Só que ele nunca havia expressado julgamentos morais ou sua visão particular sobre a legalização do aborto. Apenas analisou dados.
Mas as pessoas só aceitam a verdade que lhes convém.
É por isso que 2015 termina como o ano da sabedoria convencional no Brasil. Com o Congresso mais conservador das últimas décadas, uma direita furiosa e um ativismo de esquerda cada vez mais radical, nunca o país pareceu tão refém de dogmas que nos emperraram no mesmo lugar. Do impeachment ao aborto, da barragem de Mariana às escolas em São Paulo, pouco se debateu em cima de fatos e dados, só em cima de ideologias e lados.
Alguns atravessaram o ano inseguros na rua, outros inseguros no próprio emprego, todos inseguros com o país. Mas, com todo mundo berrando ao mesmo tempo, em Brasília ou no restaurante com os amigos, ouvimos mais barulho do que verdades. Ouvimos só as verdades que nos convinham.
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