26 de dezembro de 2015 | N° 18396
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO
OS QUE SE DEVIAM AMAR
Quando o professor João Gomes Mariante, encantado com a personalidade desconcertante de Getúlio Vargas, com quem tivera o privilégio do convívio, resolveu revisitar as circunstâncias emocionais do seu suicídio, tivemos a certeza de que um livro imperdível estava a caminho.
Convidado a prefaciar o ensaio em que ele, com extrema sensibilidade, disseca os meandros recônditos de um ser que nunca se deu a conhecer integralmente, aceitei embarcar nesse projeto fascinante sentindo-me mais desafiado e seduzido do que qualificado.
Constatei que, mesmo sem uma percepção clara, eu também tinha sido cooptado por esse personagem que entrara na minha vida quando tinha uns cinco anos. Numa época de ideologias inflexíveis e convicções políticas pragmáticas, recordo o quanto me impressionou saber que meu amado avô materno tinha rompido relações com sua única irmã, que, ao contrário dos outros irmãos homens, era getulista fanática, e meu avô nem falava com esta “gente do PTB”!
A ideia que eu tinha de família não comportava esse tipo de dissidência afetiva, e aquilo me marcou profundamente. Lembro, com a clareza que só a excitação extrema é capaz de incrustar na memória de uma criança, da manhã memorável de 24 de agosto de 1954: minha mãe, ao ouvir pelo rádio a notícia de que Getúlio se suicidara, perguntou-me se eu era capaz de cavalgar até a fazenda do meu avô para contar-lhe a novidade. Disse que sim e, na empolgação incontida de oito aninhos, parti na minha primeira e inesquecível expedição solo.
Como a imagem que eu tinha de cavalgada era muito influenciada pelos filmes de faroeste, galopei até a fazenda de um tio que ficava exatamente a meio caminho, e lá, depois de passar-lhes a notícia, fui advertido que, naquele ritmo, era provável que minha égua branca morresse estafada antes de completar o percurso. Mas o galope se impunha pela dupla excitação: levava latejando na garganta uma informação bombástica e, no íntimo, a expectativa carinhosa e doce de que, com a morte da discórdia, quem sabe a tia Amália, tão queridinha comigo, pudesse voltar a conviver com a gente.
Nos dias que se seguiram, enquanto as multidões choravam a morte do Getúlio, eu procurava sinais de uma reconciliação que nunca ocorreu. Aprendi naquela época que o ódio entre pessoas que se deviam amar é sempre mais áspero, duradouro e definitivo.
Quando recuperei o interesse por Getúlio como esta figura inigualável da história brasileira, já era adulto e, então, passei a ler tudo o que encontrei sobre a sua tumultuada biografia. Com este preâmbulo afetivo, a atração mais do que inevitável foi obrigatória, porque aquele homem pequeno, matreiro, com uma sabedoria política intuitiva, dono da resposta inesperada e desconcertante, sempre me pareceu merecedor de admiração e inveja de quem privilegie inteligência e sagacidade na seleção das pessoas cujo convívio valha a pena.
À semelhança da maioria dos suicídios, o dele foi antecipado em inúmeros momentos em que ele se sentiu diminuído, abandonado ou traído.
E, por fim, ele cumpriu o que parecia ser uma mera chantagem emocional, e deixou o Brasil com sentimento de culpa por não ter percebido o tamanho do seu desconsolo a tempo de confortá-lo.
Constrangidos de tê-lo abandonado a uma solidão intolerável, os seus amados preferiram ignorar sua derrota como um ser humano sofredor e trataram de ungi-lo à condição de herói nacional. Foi por isso que se chorou tanto pelas ruas e avenidas do país naquele fatídico mês de agosto, cuja memória anda em círculos no coração dos que o amaram. E foram muitos.
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