sexta-feira, 11 de dezembro de 2015



Contardo Calligaris: Italiano, é psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias). Escreve às quintas.

Celibatárias


Única de três irmãs, minha tia Doretta nunca se casou. Foi por causa do irmão, Geraldo, que ficara viúvo quando o filho, Hipólito, tinha apenas 2 anos. Doretta desistira de criar sua própria família para se ocupar do sobrinho, e, de fato, ela criara Hipólito como um filho.

Ninguém achava que Doretta tivesse "sacrificado" sua vida. Certo, provavelmente morrera virgem, mas sem renunciar ao que todos pareciam considerar como o essencial: ela tinha sido mãe e, de uma certa forma, junto ao irmão, havia construído um lar. Também duvido que ela tivesse sido arrebatada por uma paixão incestuosa, mas certamente conhecera o sentimento amoroso: por mais que fosse de maneira platônica e reservada, ela amara Geraldo, seu irmão.

Em suma, a única renúncia de Doretta foi que teve, por assim dizer, um casamento sem sexo. Desse ponto de vista, talvez ela não tenha perdido quase nada. No começo do século 20, o sexo que o casamento prometia a uma mulher tinha uma boa chance de ser tremendamente ruim: a maioria dos homens sequer estava disposta a reconhecer a existência de desejo sexual nas mulheres. 

E, segundo uma pesquisa da época, uma parte significativa das próprias mulheres pensava igual: no fim do século 19, em Nova York (lugar bem mais liberal do que a Itália rural), muitas mulheres achavam seu próprio sexo repulsivo. Nesse contexto, para uma mulher, importar-se com a vida sexual era um escândalo, e renunciar a ela era um sacrifício irrelevante.

Uma boa parte do discurso atual contra o descriminalização do aborto se alimenta, aliás, nesse antigo desprezo pelo prazer feminino: ela quer transar e não pagar o preço? Eu diria: claro, por que não? Não é normal que a mulher possa transar só pelo prazer?

Mas voltemos ao que importa. Doretta "ganhou" um filho para criar e uma família. Ela, em suma, bem ou mal, realizou sua vocação feminina, não é?

Rebecca Solnit, uma de minhas ensaístas preferidas –estou amando "Men Explain Things to Me" (os homens me explicam as coisas)–, palestrou várias vezes sobre Virginia Woolf –a qual, como se sabe, viveu sacrificando quase tudo ao ofício de escrever. Um dia, alguém da plateia perguntou: "Mas será que ela foi feliz?". O sentido era: tudo bem, ela foi a escritora que quis ser, mas uma mulher pode ser feliz sem filhos e grandes amores?

Não sei se vale a pena sacrificar as (eventuais) alegrias dos amores e da família para construir uma obra –acho que depende das alegrias e, sobretudo, depende da obra. Justamente, no caso de Virginia Woolf, tendo a pensar que sim, valeu a pena. De qualquer forma, o que importa é que ninguém (ou quase) colocaria uma pergunta análoga sobre Ernest Hemingway, Malcolm Lowry ou Charles Bukowski –ninguém perguntaria se eles foram "felizes".

No caso deles, aceitamos facilmente que o alcoolismo, a depressão, a aparente infelicidade e os casamentos turbulentos fossem o preço necessário para que eles se dedicassem, no fundo, a uma coisa só: seu desejo –que, no caso, era o de escrever. Questionar se foi certo eles renunciarem aos prazeres da família nos pareceria besta, careta.

Por que o mesmo não valeria para Virginia Woolf? Difícil acreditar que a gente ainda esteja nesta, mas é porque a maneira esperada de uma mulher se realizar ainda parece ser a que consiste em formar uma família. Em nome da realização familiar, parece "lógico" que uma mulher possa renunciar ao sexo e, mais ainda, a todos os seus outros desejos e potencialidades.

Quando um homem se casa, parentes e amigos sempre evocam os caminhos pelos quais, como consequência do casamento, ele deixará de se enveredar. Ele renunciará a aventuras incríveis, vocações manifestas e supostos talentos, e não será por mediocridade ou covardia: que pena, o casamento impedirá que ele venha a ser pintor em Paris ou caçador de crocodilos no Outback australiano.

Em suma, o homem é um poço infinito de potencialidades inexploradas, que serão eventualmente perdidas e frustradas pelo prosaísmo resignado da família e do casamento.

Enquanto a mulher (sorte dela, não é?) parece ter uma potencialidade dominante, incontestada: a de se casar e formar uma família. E ela será irremediavelmente frustrada se ela seguir desejos "divergentes". Não é por isso, por ter seguido seu desejo "divergente" de escrever, que Woolf foi infeliz e se suicidou? (para evitar mal-entendidos: estou sendo irônico). 

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