quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

 
17 de dezembro de 2015 | N° 18388
ARTIGO - MARCELO RECH*

EMBARCAMOS NUM TITANIC


Os folhetos de propaganda eram sedutores. Prometiam uma viagem rápida e exuberante ao Mundo Novo. Todos os mimos e benesses para alguns felizardos cupinchas na primeira classe e privilégios nunca antes vistos para a terceira classe, estimulada a empilhar dívidas para ingressar no mundo dos cruzeiros ao paraíso do consumo. Melhor ainda: gigante pela própria natureza, o navio fora uma concepção genial, vendido como à prova de naufrágio graças à destreza dos mentores da Nova Política de Transportes.

A comandante nunca tinha pilotado algo parecido, mas o dono da companhia de navegação a havia escolhido pela lealdade absoluta e pela capacidade de admoestar violentamente quem contestasse alguma orientação. Não entendia grande coisa de mar e navios, mas era firme em calar as vozes destoantes, tachadas de pessimistas e inconformadas com sua nomeação.

Portentoso, o paquete partiu do porto com fanfarra. Por um tempo, a viagem transcorreu alegremente, embora houvesse um murmúrio entre a tripulação de que a comandante estava gastando carvão demais para sustentar a velocidade. Certo dia, alguns tripulantes ousaram levantar dúvidas sobre a rota e o ritmo de consumo. Reuniram-se primeiro com o lugar-tenente da comandante, responsável pelo estoque de carvão, e o advertiram: estavam torrando combustível e, se mantivessem o desperdício, não haveria como chegar ao destino. Pior: havia relatos de icebergs à frente, e o mais seguro seria alterar imediatamente o curso.

Irritados, a comandante e o lugar-tenente classificaram o alerta como sabotagem e determinaram o silêncio dos críticos para que não assustassem os passageiros embevecidos. Se continuassem a levantar dúvidas, seriam considerados traidores neoliberais da companhia de navegação.

O resto da história é conhecido. Neste momento, o navio faz água. O lugar-tenente sumiu e um motim ameaça destituir a comandante. O chefe das máquinas, um grandalhão risonho e de boa formação, é um dos poucos a tentar colocar ordem na descida dos escaleres. Muitos estão emperrados ou já foram ocupados por graúdos da companhia de navegação e seus amigos, que ignoram o coordenador do salvamento. No restaurante da primeira classe, a prataria da mesa de um grupo de políticos desapareceu. 

O estoque de carvão mal dá para assegurar as luzes acesas. Mesmo assim, facções de apoio à comandante desfilam pelos conveses adernados exigindo não apenas que ela permaneça no leme como reivindicam mais carvão para retomar a viagem, enquanto põem toda a culpa nos icebergs. E a orquestra? Bom, essa foi mandada para acalmar a terceira classe e dar a impressão de que o navio se aguenta até pelo menos o Cabo do Ziriguidum.

*Jornalista do Grupo RBS marcelo.rech@gruporbs.com.br

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