27 de dezembro de 2015 | N° 18397
L. F. VERISSIMO
Claro
– Por que “claro”? – O quê? – “Claro”. Você disse “claro” quando o garçom perguntou se sua caipirinha era de vodca.
– E daí? Eu prefiro caipirinha de vodca. – Mas por que o “claro”?
– Como?
– Quando você disse “claro”, foi como dizer “que pergunta”. Que é óbvio que caipirinha tem de ser de vodca. Você estava fazendo uma crítica indireta à caipirinha de cachaça, insinuando que cachaça é claramente inferior a vodca. Que caipirinha de cachaça é uma coisa impensável. Que o garçom deveria saber isto, sem precisar perguntar.
– Você endoidou?
– Ou então, quando disse “claro”, você estava dizendo que o garçom deveria ter visto, na sua cara, que você é um homem de vodca. Que alguém da sua classe, com a sua sofisticação, com o seu bom gosto, jamais preferiria cachaça.
– Eu não acredito no que eu estou ouvindo... – No fundo, o seu “claro” foi uma declaração política. Você se declarou da elite, e estranhou que o garçom não notasse, ou tivesse dúvida.
– Tudo isso só porque eu pedi uma caipirinha de vodca?
– Não. Se você tivesse apenas pedido uma caipirinha de vodca, seria uma coisa. O que eu não entendi foi o “claro”. Por que “claro”? – Eu nem pensei no que estava dizendo.
– Claro que não pensou. Seu elitismo é arraigado. Seu reacionarismo é visceral.
– Ah, agora eu sou reacionário só porque prefiro vodca em vez de cachaça?
– Não. Porque você disse “claro”. – Vem cá. Nós não somos da mesma classe? Se eu sou elitista, você também é.
– Pedi minha caipirinha de cachaça, velho.
– Ah, é? E até onde sua preferência por cachaça também não é uma declaração de princípios? Uma maneira de dizer que você é da elite, mas está com o povão? Sabe de uma coisa? Eu estou cansado de elite com culpa. Aposto que você tem horror a cachaça e só não pede caipirinha de vodca pra não pensarem que está traindo as massas.
– Ah é? Ah é? Melhor elite com culpa do que elite alienada. – Eu só não entendo como a nossa amizade durou tanto tempo.
– Garçom! Suspende as caipirinhas!
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