10 de dezembro de 2015 | N° 18381
DAVID COIMBRA
Para Paulo Sant’Ana
Tive um grave contencioso com o Paulo Sant’Ana, todo mundo sabe disso. Mas, antes da minha entrada no Sala de Redação, éramos bons amigos. Saímos juntos muitas vezes, partilhamos jantares, invadimos madrugadas conversando e, não raro, flagrei-me na obrigação de ouvi-lo cantar por longos minutos, prova cabal e irrefutável da minha amizade.
Uma tarde, lá estava eu, caçando verbos na Redação da Zero, quando o Sant’Ana me ligou.
– Desce aqui agora! Vem aqui no meu carro, agora! É importante!
A urgência na voz dele me assustou. Desci correndo. Encontrei o Sant’Ana instalado dentro da sua camionete. Pediu que me acomodasse no banco do carona. – O que foi? – perguntei, preocupado.
– Escuta isso! – falou, com voz embargada. Acionou o som do carro. Queria que eu ouvisse um bolero dos anos 40 que ele havia descoberto naquele dia. – Escuta que maravilha! – dizia, chorando. – Que maravilha!
Sim, fui amigo do Sant’Ana.
No Sala, nossas personalidades se chocaram irremediavelmente. Desde então, não nos falamos mais. Sei que isso é ridículo, brigas em geral são mais ridículas do que cartas de amor, tanto que nem merecem poemas de Fernando Pessoa. Mas... que fazer? Tenho tentado não ser ridículo toda a vida e toda a vida tenho fracassado.
Nada disso me impede de reconhecer a importância do Sant’Ana no jornalismo gaúcho. Nunca houve jornalista mais famoso do que o Sant’Ana no Rio Grande do Sul, nem jamais haverá. O Sant’Ana soube ocupar com garra e intensidade os espaços de que foi inquilino.
Aí roço numa questão importante: nós, jornalistas, somos, exatamente, inquilinos dos espaços que porventura preenchemos nos veículos de comunicação. Os espaços não são nossos. Nós estamos ali por temporadas. Durante esse tempo, podemos ocupar bem ou mal o espaço, podemos fazer com que aquele período signifique algo para a comunidade ou não.
O Sant’Ana fez isso muito bem. O Sant’Ana se inscreveu na história do Rio Grande do Sul com seu desempenho, e essa é uma façanha rara para um jornalista. Jornalistas são como o jornal do dia: são importantes só na sua data de validade.
O Sant’Ana conseguiu ultrapassar essa barreira precisamente graças à dedicação furiosa, à sede insaciável com que atuou na imprensa. Esse é um de seus grandes méritos. E foi por isso, também, que nos desentendemos. Em certo momento, ele começou a ver em mim uma ameaça e, então, numa reação natural a quem preza tanto o espaço que ocupa, passou a me atacar.
Rompemos em definitivo.
Tudo bem, rompimentos fazem parte da vida. Em geral, são positivos para ambas as partes, porque, quando você desfaz um laço, você, exatamente, se desamarra, torna-se mais livre. Rompeu, acabou, não se pensa mais nisso.
Mas tenho de dizer que penso no Sant’Ana. Entendo a briga que tivemos como inevitável, por todas as circunstâncias envolvidas e devido às nossas personalidades. Ocorre que, agora, ele está em casa, recuperando-se de uma cirurgia complicada, e torço para que fique bom logo. Sei o quanto o Sant’Ana gosta de viver, sei com que sofreguidão ele sorve cada dia e espero que sorva muitos mais, com plenitude e prazer. Um homem que chama um amigo no meio da tarde para com ele partilhar um bolero é, sem dúvida, um homem afetivo e a vida, afinal, é feita de afetos. Inclusive dos que se encerram.
Saúde e sorte, Sant’Ana. É o desejo sincero de um amigo antigo.
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