sábado, 19 de dezembro de 2015



20 de dezembro de 2015 | N° 18391 
LUÍS AUGUSTO FISCHER

Caixa de perguntas

Nesses dias de final de ano, a vontade que dá, num espaço privilegiado como este aqui, é a de saudar todo mundo, ou os de bem, e desejar um ano bem melhor. E dar balanço do ano que termina – e que ano. Uma sucessão de revelações envolvendo os principais partidos e um naco das mais importantes instituições do país. Um pacote de gente presa, de gente delatando esquemas, tudo num sem-fim que dá nos nervos de qualquer um. E nem falamos da crise econômica, que já tem feito vítimas várias, atingindo primeiro os de sempre: os de baixo.

Mas acontece que eu fui atropelado por um livro, e não pude largá-lo até vir aqui para dar notícia dele. Saiu já em 2013, e para meu constrangimento só agora tomei contato com ele. A editora é a Libretos; o autor é Elenilton Neukamp; o livro se chama Caixa de Perguntas, e tem um subtítulo poderoso: Desafio Vivo em Sala de Aula.

De que se trata: um relato de experiência. O autor é professor em escola pública de periferia. De Filosofia. Os dados começam a rolar no tabuleiro: dar aula de Filosofia em escola dessas condições, todo mundo sabe, é coisa de maluco, de herói, de visionário – ou de um cidadão centrado e convencido do papel civilizador que a escola tem, precisa ter. Este último é o caso do Elenilton.

O livro tem lá suas desigualdades; ao lê-lo tive vontade de contribuir para uma arrumação do material em formato mais produtivo, mais justo. Mas essa impressão não importa para nada: o que vem ao caso é o que ele conta, como ele pensa.

Assim: o professor Elenilton descobriu, em 2004, que havia uma maneira de abrir um genuíno e produtivo diálogo com os alunos daquele mundo em que trabalha – proporcionar uma caixa, para que cada um pudesse colocar suas perguntas. Sem limite de tema, sem medo, sem necessidade de assinar; só não valia mencionar nomes de pessoas da escola, nem ofender ninguém. No mais, tudo livre.

O professor então leva a caixa para casa, digita as perguntas – mantendo os erros eventuais, que também são motivo de aprendizado e são comentados com a turma – e retorna para a escola (as perguntas são lidas em todas as turmas) abrindo a discussão sobre os temas ali solicitados. Sem censura, enfrentando a vida que explode nos alunos, mas também espalhando questões para colegas de outras áreas – claro, uma porção grande das perguntas tem a ver diretamente com sexo e correlatos, desde a paixão até assédio e estupro.

(E o Elenilton lembra, de modo singelo e poderoso, o que o animou a essa invenção: “lembrava-me do Elenilton estudante, um garoto tímido que jamais teria a coragem de levantar o dedo para perguntar” algo íntimo, delicado, problemático. Da autocrítica e do autoconhecimento é que se faz o grande professor, sempre.)

O livro começa com uma conversa sobre o papel que a Filosofia tem ou pode ter na vida dos adolescentes, mas também dos adultos em escola. Desdobra-se em relatos sobre o uso concreto da caixa em sala de aula – uma caixa de madeira, com uma fenda em cima, por onde o aluno enfia seu bilhete, em papel roubado ao caderno – e avança para considerações muito úteis sobre o processo. Por exemplo: o dar-se conta de que a caixa é uma mediação para o mais básico da Filosofia e da escola, o diálogo. Na caixa, todas as perguntas são genuínas, urgentes, inseguráveis.

Depois vem uma segunda parte em que são reproduzidas, em várias páginas, muitas das perguntas reais feitas por alunos. São comoventes, embaraçosas, inteligentes, de vez em quando bobas, alguma vez duras, sempre interessantes, por algum motivo. Diz o autor que se trata de considerar cada pergunta como expressão de uma vida, de um pensamento.

Adolescentes têm muitas dúvidas sobre sexo, e portanto suas perguntas pesam muito nesse aspecto. (Estou relendo, por motivos profissionais, o Dom Casmurro, do Machado de Assis; e ali se lê: “Há em cada adolescente um mundo encoberto, um almirante e um sol de outubro”.) Mas há arguições sobre o racismo, sobre o sentido da escola, sobre ciência, sobre o imponderável da vida, sobre a felicidade, sobre estar na cadeia e sobre sair dela. Perguntas, perguntas, perguntas.

Na terceira parte, o livro reproduz algumas respostas que o Elenilton deu, para alguns casos. Por exemplo ao seguinte bilhete: “Sor, eu odeio todo mundo. Me ajuda a gostar do mundo”. E agora? Como conversar sobre isso? O Elenilton encontrou um caminho, que deve parte importante ao passado pessoal do próprio professor. (Alunos querem saber, uma vez me disse uma sábia psicóloga escolar, como é que se pode sobreviver à adolescência.)

Por esse caminho, há textos relatando a vida do autor, descendente de pobres camponeses expulsos da Alemanha, que teimaram em sobreviver. A vida não teve muita graça para o Elenilton menino.

Mas o Elenilton adulto deu a volta por cima, oferecendo um livro que toca o sublime, em sua encarnação tão concreta, tão chã, tão dura. Imperdível.

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