
30
de setembro de 2014 | N° 17938
FABRÍCIO
CARPINEJAR
Estava curado até você aparecer
Tudo
tão bem guardado, eu jurava que tinha esquecido, controlado o nosso passado. Eu
já sorria com os amigos, já me divertia, já trabalhava com afinco, viajava
leve, flertava livre. Eu já contava com uma outra vida.
Já
não resmungava seu nome em cada ligação, já não rezava pelo seu retorno, já não
esperava que o celular fosse tocar, já passava pelos nossos lugares favoritos
como se fossem ruas desconhecidas do GPS.
Até
que vi você em minha frente. Até que abracei você. Até que seu perfume voltou a
se misturar à minha barba.
Até
que sua boca se aproximou do meu pescoço, macia e fria, como a gola de uma
camisa recém estreando.
E
aquela atração que julgava desaparecida e morta ressurgiu como se fosse o nosso
primeiro dia, o nosso primeiro dia com a memória do último dia.
Você
me reabriu muito rápido. Quanta facilidade, quanta naturalidade. Precisou de
pouco, quase nada. Eu me senti inútil, despreparado, decepcionado com a fraca
resistência.
Você
reabriu a caixa cardíaca que destruí e não acabou, a caixa cardíaca que
enterrei e continua mandando em mim.
Você
precisou só me olhar como se estivesse com fome, sem dizer nada, para que eu
colocasse dois pratos na mesa.
Você
só precisou ameaçar abrir o botão, sem dizer nada, para que lhe ajudasse a
tirar o casaco.
O
que sofri não me protegeu de você. A angústia não me protegeu de você. A raiva
não me protegeu de você.
E me
desesperei porque poderia sofrer tudo de novo e ainda assim não me protegeria
de você.
Todo
esforço foi em vão. Todo o domínio foi em vão. Toda a reabilitação foi à toa.
Tanta
dor para erguer paredes, que apenas serviram para não ter saída.
Deveria
saber que a dor não imagina portas, a dor não cria portas, a dor unicamente
levanta paredes.
A
dor me facilitou para você, estava preso em minhas palavras enquanto se
aproximava.
Vejo
hoje que, durante o tempo distanciado, enfrentava sua lembrança, jamais sua
pele roçando a minha, jamais sua voz a um passo de meu rosto, jamais suas
pernas entrelaçadas.
Não
me preveni contra sua presença, e sim contra sua imagem.
Eu
treinei me separar com você longe, não perto, não rente, não soluçando beijo.
Este seu beijo que fica soluçado quando aumenta o desejo.
Bastou
uma centelha para a esperança queimar a casa inteira. Bastou o fósforo apagado
para recobrar o fogo.
Antes
seguro, tranquilo, confiante, agora tremia, balbuciava, perdia o discurso,
agradecia o abismo.
Meses
de ressurreição desmoronados em segundos.
Você
se escondeu de mim dentro de mim.













Lembro-me de uma matéria interessante que li anos
atrás na revista Elle: convidaram uma estudante e uma executiva para passar 24
horas com a roupa uma da outra. Explico: a estudante, que costumava se vestir
de uma maneira sexy e irreverente, teve de se vestir com o que encontrou no
closet da executiva, e esta, por sua vez, teve de abandonar seu estilo sóbrio e
conservador para escolher peças no closet da estudante. Resultado: viraram
outra mulher por um dia.
Quando eu comecei a escrever crônicas, quinze anos
atrás, prometi a mim mesmo que iria revolver somente a terra do meu canteiro,
resistindo à tentação de arrastar o meu modesto arado por latifúndios
pedregosos como a política, a economia, a crise no Oriente Médio. (Como diz o
mestre Humberto Werneck, crônica é conversa sentado no meio-fio, não discurso
sobre um caixotinho). Todo domingo, porém, questiono minha promessa: o mundo é
vil, o país é injusto, há muitas causas importantes sem voz e muitos calhordas
com megafones – devo seguir falando da minha infância, de um amigo que reencontrei,
dos primeiros passos da minha filha?