quinta-feira, 10 de julho de 2008



10 de julho de 2008
N° 15658 - Leticia Wierzchowski


Réquiem para uma formiga

Uma amiga que mora nos EUA trouxe pro meu filho uma colônia de formigas. O negócio consiste numa caixa de plástico transparente, chata e retangular, recheada de um gel verde "extremamente nutritivo para as formigas".

Num canto da caixa há um buraco por onde devem ser inseridas as formigas que vão viver em cativeiro sob a contemplação feliz de uma criança - no caso, a minha. O manual de instruções dizia que as formigas escolhidas deviam ser todas de uma mesma colônia, e que podiam, inclusive, ser encomendadas via correio.

Rimos muito, eu e meu marido: encomendar formigas pelo correio é coisa de americano. Bastava ir até um jardim qualquer e encher a tal colônia de formigas, e em poucos dias o tal gel estaria todo furado de túneis, como mostrava a ilustração do manual.

Rá, doce ilusão... Isso foi na Páscoa, então fomos pra Gramado e coletamos as formigas por lá. Tarefa árdua é pegar formigas e colocá-las através de um orifício - evidentemente, elas não querem ir, e várias tiveram as patas amputadas nesse laborioso processo.

Remorsos nos fizeram voltar ao manual, que sugeria deixar as formigas por dez minutos na geladeira - elas ficam mais lentas resfriadas, mas nem assim entravam pelo tal buraquinho.

Depois de dois dias gelando e degelando formigas, sem poder contar com os benefícios do correio americano, colocamos três infelizes na tal caixa, e chegamos a duas conclusões: a) elas eram de colônias rivais; b) as formigas gramadenses são como os traficantes cariocas: ao final de uma tarde, das três, só havia uma sobrevivente.

Voltamos pra casa com a formiga assassina. No começo, tive antipatia por ela; afinal, tinha matado e, aparentemente, comido as duas colegas.

Mas passei a sentir-lhe pena: sozinha ali, sem nada pra fazer naquele oceano de gel, e todos sabemos que formigas são insetos gregários e trabalhadores.

Acho que ela ficou logo meio pirada, além de gorda. E quando meu marido tentou soltá-la, não quis mais sair (se é difícil colocar uma formiga pelo tal buraco, imaginem tirá-la).

Assim se passaram os dias, e a formiga viveu ali três longos meses. Só de mirá-la, qualquer desentendido podia dizer que tinha cara de louca. Deixava-se ficar na superfície do gel, refletindo sobre sabe-se lá quais assuntos formigais.

Morreu essa semana, coitada, depois de cavar seu único túnel. Não sei se foi vencida pelo esforço ou pela solidão, mas confesso que vou carregar essa minúscula morte na consciência.

Nenhum comentário: