quarta-feira, 2 de julho de 2008



02 de julho de 2008
N° 15650 - David Coimbra


A trilha do cabelo

Imagine um cabelo bem repartido. Na verdade, o cabelo mais bem repartido da cidade. O cabelo do Clóvis. A trilha que dividia o cabelo do Clóvis abria-se à altura do canto externo do olho esquerdo e seguia, reta e lisa como o caminho da virtude, para desaguar lá atrás, nas barrancas da nuca.

Como o Clóvis fazia tal trilha, eis o mistério. Com régua, talvez. O certo é que nenhum vento, nenhuma intempérie, nada desmanchava aquela preciosidade da simetria.

Clóvis era supervisor de clube de futebol. Chegava cedo, batia o ponto e ia para sua mesa. Sentava-se sisudo debaixo da trilha perfeita. Alguém mais observador olharia para a trilha e pensaria: como ele consegue?... Mal sabia, esse alguém, que o Clóvis estava insatisfeito com a repartição do seu cabelo.

Todas as noites, ele se olhava no espelhinho do banheiro e conjeturava como ficaria se repartisse o cabelo da direita para a esquerda. Seria uma revolução. Clóvis lembrava-se precisamente do dia em que, pela primeira vez, seu cabelo fora repartido da esquerda para a direita.

Obra de sua querida mãezinha havia muitos anos. Clóvis ia estrear no pré-primário. Até então, jamais supusera que um cabelo pudesse ser repartido. Mas, naquele dia, sua mamã o colocou diante do espelho do quarto e, com amor infinito, dividiu-lhe o cabelo macio de menino da forma como ele repetiria todos os dias, todos os meses, todos os anos, pelo resto da vida.

Porque Clóvis não esqueceu jamais aquele gesto materno. Foi um gesto de proteção, preparando-o para a vida lá fora. Para o mundo adulto. Clóvis mirou a trilha impecável no espelho e gostou do resultado.

Foi para a escolinha sentindo-se acalentado pela afeição da mãe. Nenhum garoto, por agressivo que fosse; nenhuma menina, por coquete que se apresentasse; nenhuma pergunta capciosa da professora; nada abalaria a confiança de Clóvis, uma vez que tivesse na cabeça a trilha imaculada de sua genitora.

Foi assim que Clóvis enfrentou os percalços da existência a partir daquele dia, sabendo que, sobre seu ser, havia um cabelo sem pecha, símbolo de uma cabeça organizada, de uma vida planejada, coordenada eternamente por sua mãe, ainda que ela estivesse ausente.

Por isso, Clóvis prezava a repartição de seu cabelo e jamais a alterou. Mas um dia surgiu Tríssia.

Foi contratada para trabalhar na secretaria. Jovem, 25 anos. Pequena, mas não baixinha. E o melhor: tratava-se de um legítimo exemplar de falsa magra. Tríssia tinha um corpo bem formado, firme como a defesa do Grêmio.

Andava empinadinha pelo escritório. Clóvis a admirava em segredo. E a desejava... Não achava que pudesse ter sucesso com ela. Porém, no final de uma tarde de inverno, restavam apenas eles dois no escritório, e Tríssia comentou, espreguiçando-se feito uma gata no sofá:

- Ah, hoje eu queria beber um chope...Só de brincadeira, sem nenhuma pretensão, Clóvis disse:

- Vamos? Ela se empertigou na cadeira: - Vamos!

Seu coração quase saltou boca afora. Sairia com Tríssia! O mundo era bom.

Menos de meia hora mais tarde, sentado no bar, Clóvis ouvia Tríssia falar. Os olhos dela faiscavam de excitação. Não por estar com ele. Pela vida. Tríssia dizia que queria sair por aí, viajar, conhecer o mundo.

- Quero botar uma mochila nas costas e ir para a Europa!

Toda aquela ânsia de liberdade tocou Clóvis. Emocionou-o. Tríssia, sentada a sua frente, significava a amplitude da vida. Era o sentido da existência. De que importava o futebol?

A política? A economia? De que importavam os jornais, a televisão, os bons empregos, os carros velozes e o dinheiro dos nababos? Tríssia estava ali, dizendo-lhe o que realmente importava - a liberdade!

Ao deixá-la no edifício onde morava, Clóvis sentia o peito oprimir-se de tanta liberdade. A liberdade de Tríssia. Que o envolvia, derramava-se por sua corrente sangüínea e alterava-lhe a substância da alma.

Antes de sair do carro, ela... ela beijou-o na boca. Foi um beijo ao mesmo tempo voraz e manso, que, ao mesmo tempo, o excitou e o comoveu. Tríssia se foi, e Clóvis voltou para casa angustiado. Ele também queria ser livre. Ele também queria viver.

Foi assim que decidiu mudar a repartição do cabelo. Naquela noite, Clóvis experimentou penteá-lo para o outro lado. Acostumado com uma vida deitado para a direita, o cabelo se rebelou.

Recusava a posição nova. Clóvis teve de domá-lo a golpes de creme rinse. Mas, ao ver a trilha no lado direito, arrepiou-se de horror e enfiou-se na cama.

No dia seguinte, foi trabalhar com o velho cabelo de mamã. Passaram-se semanas, até Clóvis tomar uma atitude. Acordou cedo e penteou o cabelo para a esquerda com decisão. Entrou no clube com o peito estourando de ansiedade. O que os outros diriam? Mas, para sua profunda decepção, ninguém notou.

Clóvis sentou-se atrás da sua mesa sem que um único colega fizesse uma só observação. Conversavam com ele, tomavam café com ele, falavam de tudo, menos do seu cabelo. Nem sequer olhavam para o seu cabelo. E ela, Tríssia... ela mal o encarou.

Clóvis estava decepcionado. Mais: estava magoado.

Com todos os que se diziam seus amigos, mas sobretudo com ela. Ela não sabia nada dele. Ninguém sabia nada dele. Naquele dia, Clóvis compreendeu como um homem pode ser solitário.

No final da tarde, já pensava em pedir demissão, em ir embora dali, em nunca mais ver nenhum deles, quando ela, Tríssia, parou de pé ao seu lado.

Clóvis levantou a cabeça com o cabelo repartido da direita para a esquerda e foi neste cabelo, nesta peça harmônica e flamante de engenharia capilar, que Tríssia pousou sua pequena mão e o afagou suavemente e amassou um tufo e ciciou, enfim:

- Eu gostei. Depois ela sorriu. E Clóvis sorriu. E viu que, sim, o mundo pode ser bom.

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