04 DE SETEMBRO DE 2021
ELIANE MARQUES
MITOLOGIAS CONTEMPORÂNEAS
Semana passada vi pai e filho de mãos dadas numa esquina da cidade. Na mão liberta da segurança paterna, a criança levava um enorme martelo Mjolnir. Sabemos que o artefato, também referido machado ou porrete, pertence a Thor, filho de Odin, pai de todxs. Thor é associado aos trovões e às tempestades nas mitologias germânicas, especialmente da era viquingue. Num surto alucinatório, troquei o martelo de Thor da mão pequena e desprotegida pelo Opáxoró (cajado), de Obatalá; depois pelo Oxé (machado), de Xangô; a seguir pelo Abebé (leque com espelho), de Oxum e, definitivamente, pelo Ogó (porrete), de Exu. Creio que a alucinação não adveio do desejo de impor à infância certo tipo de brinquedo, de modo a alterar apenas o conteúdo do discurso por outro igualmente autoritário. Creio que a alucinação adveio do desejo de inventar outra mitologia contemporânea.
Seria uma visão insuportável essa, a de uma criança com o Ogó de Exu como brinquedo tendo ao seu lado direito o pai protetor sem qualquer ruga de preocupação no rosto translúcido? Eu seria processada e condenada pela gente de bem de "nosso" Brasil por corromper crianças, por incitar à juventude ao culto dos ídolos que não as celebridades do momento?
Quem me acompanha nesta coluna sabe que volta e meia me abrigo em algum mito. Assim como língua e fala se distinguem por um critério temporal de reversibilidade e irreversibilidade, respectivamente, pois o já falado não retorna para dentro da boca, o mito também se define por um sistema temporal que combina as características da língua e da fala. Um mito sempre se refere a eventos passados; contudo, o passado não o domina na medida em que sua narrativa decorre de uma estrutura permanente, que, ao mesmo tempo, é antes, hoje e amanhã. O mito, então, possui caráter histórico e não histórico, o que faz com que pertença ao âmbito da fala e da língua.
Para Lévi-Strauss, nada se parece mais ao mito do que a ideologia política. Nas sociedades contemporâneas, talvez elas o tenham substituído, disse o antropologo, citando como exemplo a Revolução Francesa - "uma série de eventos longínquos cujas longínquas consequências certamente ainda se fazem sentir, através de uma série não reversível de eventos intermediários", instrumentalizada pelos políticos para interpretar a estrutura social da França e seus antagonismos.
Que seja "normal" uma criança levar o Mjolnir e assustador que brinque com o Ogó também faz parte de nossas mitologias contemporâneas.
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