terça-feira, 10 de março de 2009



10 de março de 2009
N° 15903 - MOACYR SCLIAR


Um símbolo de nossos perplexos tempos

Durante os dias que passei em Londres, uma personagem aparecia constantemente nos jornais e na tevê. Vocês sabem quem é: trata-se de uma moça (27 anos) chamada Jade Goody, cuja ocupação era rotulada pela mídia em geral como “celebridade da tevê”.

E de fato ela surgiu para o público através daquele que é o mais característico programa televisivo de nossa época, o internacional Big Brother. Não foi uma aparição auspiciosa. Para começar, Jade não era exatamente uma intelectual; seus conhecimentos gerais eram precários – achava, por exemplo, que a cidade britânica de Cambridge ficasse em outro país.

Mais do que isto, fez comentários racistas contra a indiana Shilpa Shetty e teve de pedir desculpas. Do ponto de vista de sexo, seu comportamento não era dos mais discretos e chegou a escandalizar espectadores, mas é em parte explicável por seu passado.

Filha de um pai que tinha passado várias temporadas na prisão e que morreu de overdose, teve várias ligações, incluindo Jack Tweed, de 21 anos, que também foi preso por agressão e é o pai de seus dois filhos.

No ano passado, Jade descobriu que tinha um câncer de colo uterino, muito avançado e com metástases. Mau prognóstico, antecipando sobrevida muito reduzida. Numa situação dessas, as pessoas em geral buscam o refúgio do lar, da família, do hospital.

Não Jade. Sua vida continuou pública como antes. Assim, seu casamento com Jack, em fevereiro último, foi televisionado, como o foi o batismo de Jade, hospitalizada, e dos filhos.

Por que esta ânsia de aparecer? Jade diz esperar que a publicidade em torno de seu caso aumente a conscientização sobre o câncer cervical. Pode ser. Mas a grana desempenha aí um papel não pequeno. Acredita-se que ela receberá da mídia cerca de US$ 1,5 milhão. Aliás, mentalidade empresarial nunca faltou à moça. Lançou vários produtos, inclusive dois perfumes, o Shh . . .

Jade Goody e o sugestivo Controversial, ambos bem-sucedidos; abriu dois salões de beleza; escrevia (?) para jornais, lançou uma autobiografia, um livro de culinária, vários DVDs sobre forma física. Ou seja: sabe como faturar, e está usando essa habilidade. Por quê? “As pessoas vão dizer que estou fazendo isso por dinheiro”, afirmou, em entrevista. “E estão certas, mas não é para comprar carrões ou mansões. É para o futuro dos meus filhos”.

O que, certamente, deixa desconcertadas as pessoas que pensam em termos de binômios estereotipados: mal/bem, mocinho/bandido, virtude/pecado. Jade não é a boazinha que o sobrenome Goody sugere, mas também não é a bruxa malvada das histórias infantis.

É uma incógnita, e isso vem desde suas primeiras aparições. Como diz seu agente, Max Clifford: “Ela provou que, hoje, você não precisa ter talento para ser alguém. É famosa só por ser ela mesma”. E conclui: “Trata-se de um produto do nosso tempo”.

Produto: esta palavra é muito significativa. Não estamos falando de um ser humano com suas complexidades. Estamos falando de algo pronto, que atende a uma demanda. Jade é um símbolo de nosso tempo.

Explica inclusive a crise que vivemos, uma crise de valores financeiros e também de valores morais.

E que tem aspectos inesperados. O que devem pensar os jovens que, de cara pintada, pediam nas ruas o impeachment de Collor, ao ver o deposto presidente dirigindo a comissão que vai fiscalizar o PAC?

No século 12, o médico e filósofo árabe-judeu Moisés ben Maimon escreveu um tratado de título muito sugestivo: O Guia dos Perplexos. Precisamos com urgência de uma edição – revisada e atualizada – desse livro.

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