O VESTIDO DO REMADOR
- Bom dia, Lara.
- Bom dia. Tudo bem? Desculpe a demora. Meu despertador atrasou. Desculpe pela demora, novamente.
- De que demora tu está novamente te desculpando? - Eu sempre demoro. - Sempre?
- Demorei em concluir o curso de Psicologia, demorei em ter a primeira namorada, demorei em abandonar a igreja, demorei em transar. Mainha diz que demorei até em nascer. Na época em que terminei o intercâmbio na Espanha, não quis retornar ao Brasil, especialmente para a casa de mainha.
- Por que tu não quiseste voltar especialmente para a casa de mainha?
- Ela não me ama. Não há amor naquela casa.
- Te demoraste com a boca fechada. Estás mastigando o sabor das amoras de mainha? Infelizmente, não tenho ainda azeite de dendê para te oferecer. - Não precisa. Já engoli as amoras a seco mesmo.
- Para engolir as amoras de mainha, não houve demora.
- Para minha mãe, sou uma mentirosa. Quando criança, eu gostava de contar todas as histórias que imaginava durante a noite, quando a casa dormia. Eu também gostava de contar sobre o que acontecia comigo ou com meu irmão. Mas, para ela, tudo era motivo para me chamar de mentirosa. Apenas meu irmão era digno de confiança. Certa vez, o pastor da minha igreja abusou de mim e dele, eu deveria ter uns oito anos, e ele, sete. O pastor disse que nada mais que a vontade de deus aquilo que se realizaria. Tirou toda a roupa - uma calça e um paletó fedido a desodorante rexona -, deitou num banco do templo fedido a cera e, com as unhas sujas de terra, fez com que eu e meu irmão tocássemos o pênis dele até que aumentasse de tamanho e ficasse duro, duro como uma barra de oro, uma barra de oro do rei salomão, ele dizia.
- Oro? - Eu quis dizer ouro. - O que é oro? - Oro é orô.
- Orô, o passado do verbo orar? Eu orei, tu oraste, ela orô?
- Pode ser o passado do verbo orar, para mim. Hoje, orô é o sacrifício de um animal numa sessão de candomblé, um rito que transforma o sangue de dois ou quatro pés em riqueza, em beleza, para mim e para toda a comunidade do terreiro de que participo.
- O rei, or ou, os remos.
- Havia um par de remos enfeitando a parede da morada de mainha. Ela conta que os encontrou numa praia, enrolados num vestido rosa. Talvez um remeiro usasse aquele vestido em algum rito proibido. Mainha lavou e guardou o vestido no guarda-roupa do seu quarto. O guarda-roupa fedia a mente, digo, a menta. A menta é boa contra os ratos. Eu o vestia escondido quando ela não estava em casa. Um dia, mainha retornou mais cedo, não demorou tanto quanto geralmente demorava, e me pegou na tampinha, com o vestido entalado na cabeça. Eu não conseguia tirar a coisa nem por baixo e nem por cima. Eu estava sufocada com o cheiro da menta grudada no vestido rosa e ela, para me castigar, demorou um tempão para tirar aquela coisa de mim.
- A menta não funcionou contra a rata que gostava do vestido rosa. Bom, pode te levantar do divã, não estás mais entalada na demora.
- Que demora? - Ficamos por aqui, hoje. Até a próxima.
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