quinta-feira, 18 de janeiro de 2024


18 DE JANEIRO DE 2024
TULIO MILMAN

Sangue, pudins e tempestade

Primeiro, foram alguns estalos, quase imperceptíveis. Depois, os barulhos foram ficando mais altos e nítidos. O vento e a chuva invadiram o teatro. A Jaque e eu fomos assistir à perturbadora Sangue & Pudins, dirigida pelo Luciano Alabarse, em cartaz no Porto Verão Alegre, um evento cultural que orgulha os gaúchos há 25 anos. O premiado Elison Couto, que faz um papel marcante e denso, é um querido amigo. Há muitos anos eu queria vê-lo atuando.

Terça-feira era o dia. Chegamos meia hora antes, compramos nossos ingressos e nos acomodamos na plateia, já com muita gente sentada. Que venham as campainhas. E vieram.

A construção da narrativa é carregada de intensidade e violência: drogas, sexo, abandono e solidão são alguns dos eixos que sustentam a trama.

Por volta das 22h15min, comecei a notar a água pingando dos refletores, em cima do palco.

Começaram a chegar mensagens de casa. Um vídeo, enviado pela Rô, cuidadora da Maya, mostrava o piso da sala alagado. Vimos tudo no celular, colocado dentro da bolsa da Jaque, para não atrapalhar os demais espectadores. Nos olhamos, preocupados, enquanto a água e os ruídos causados pelo vento emolduravam os diálogos no palco. Eu via os atores e me perguntava: "O que farão?". Enquanto permanecemos no teatro, a peça seguiu seu ritmo. Era como se o mundo lá fora não existisse. 

O mundo, de fato, era sangue e pudins. O respeito à arte sempre foi inspirador. Imagino cada um daqueles atores e atrizes, os iluminadores, os operadores de áudio, o diretor, todos pensando: "Como está a minha casa? Minha família? Meus gatos? Meus amigos?". Mas o show não pode parar. E, até o momento em que a Jaque e eu tivemos de sair correndo para ajudar a secar o apartamento, cada um, no palco, entregava o que tinha de melhor. O hall de entrada (no caso, de saída) do Renascença era uma piscina. 

Árvores caídas, ruas inundadas, carros na contramão, ambulâncias, bombeiros, bairros sem luz. A vida imita a arte. A violência transbordou. Com baldes e rodos e panos e toalhas secamos nosso apartamento. A Maya não viu nada. Dormia o sono dos inocentes. Nossos prejuízos materiais foram pequenos diante do que aconteceu com outras pessoas, que ainda tentam reparar os danos causados por eventos incontroláveis e destruidores.

Não vimos o final da peça. Ou vimos, de um jeito diferente, que não estava no texto, mas que poderia estar.

TULIO MILMAN

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