O mapa de minhas amizades
Meus pais não me buscavam. Não havia ônibus passando de madrugada. Não existiam aplicativos na época. Não contava com dinheiro para táxi. Eu me virava. Durante toda a minha adolescência nos anos 1980, eu voltava das festas a pé com os amigos.
Nós nos deslocávamos desfalcados de qualquer celular, somente com carteira de identidade no bolso do jeans. Não havia como rastrear a nossa localização. Ninguém sabia onde estávamos. Pelo telefone sem fio, procurávamos reunião dançante em pontos remotos da Capital para entrar como penetras.
Bares e baladas pertenciam a um mundo adulto proibitivo para os nossos trocos. Buscávamos dançar e beber de graça, na base de nossa simpatia de bando. Não pensávamos na distância, apenas queríamos chegar a um festerê, a uma barbada, sem possuir plano algum para o regresso. A ausência de opção resolvia a nossa vida. Como retornávamos conversando, não nos pesava a lonjura. Enfrentávamos o perigo com o destemor da cumplicidade.
Foi assim que eu conheci Porto Alegre: na pernada. Já caminhei do bairro Ipanema ao Petrópolis, do Cavalhada ao Bom Fim, do Teresópolis ao Menino Deus. Dispúnhamos de incertos pilas para dividirmos no caminho um cachorro-quente - duas mordidas para cada um - e uma garrafa de cerveja - três goles para cada um.
Andava com os meus amigos a tiracolo, recapitulando as frustrações e os foras recebidos. Digeria as adversidades amorosas, vendo que não era o único a deixar a noite no seco. Aprendia, na terapia em grupo, a humildade da recusa. Meus tênis cediam primeiro pelas solas, depois furavam nas pontas, marcas da herança dos infinitos paralelepípedos.
Era impressionante que não reclamava do cansaço. A camaradagem noturna oferecia, além do fôlego extra, uma distração dos problemas. Tomava carona nas vozes de meus amigos. Consumíamos o tempo com as risadas, com as implicâncias, com as lembranças das meninas mais atraentes.
Avançávamos por ruelas escuras. A algazarra afugentava o receio do assalto. Quem estava perdido por ali é que ficava com medo da nossa procissão ruidosa. A verdade é que a nossa pobreza coletiva nos conferia segurança. Sequer temíamos as abordagens de estranhos.
Não há sensação mais agradável do que percorrer a própria cidade ao clarão da lua, acompanhado da tropa de sua confiança. Ouvíamos os nossos passos nas calçadas e os pássaros madrugando com seus piares. A claridade chegava aos poucos. Falávamos freneticamente, até entrar nas avenidas conhecidas. Naquele momento, estranhamente nos calávamos.
Quatro quarteirões antes do portão de casa, fechávamos a matraca. Recolhíamos as palavras para facilitar o adeus. Não é que faltava assunto, ou que acabara o filão dos segredos e dos espantos a serem repartidos. A quietude nos preparava para a despedida.
O silêncio significava que estávamos a salvo em nosso bairro. Porto Alegre jamais será intransponível para mim. Minhas amizades sempre me carregam.
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