Orlandos
Cruzar fronteiras é uma das especialidades de Paul B. Preciado. Nascido na Espanha, vive entre Atenas, Paris e Barcelona. Tem formação em filosofia, é apaixonado por literatura e acaba de lançar seu primeiro filme, Orlando, Minha Biografia Política - premiado em Berlim e exibido nos festivais de cinema do Rio e de Nova York na semana passada. Paul nasceu Beatriz, viveu como mulher lésbica por alguns anos e em 2010 iniciou um lento processo de transição de gênero. Autor de livros como Manifesto Contrassexual, Dysphoria mundi e Eu Sou o Monstro que Vos Fala (todos lançados no Brasil pela editora Zahar), Preciado é ao mesmo tempo ativista, referência teórica e poeta da teoria queer.
Fui assistir a Orlando sem saber muito o que esperar de um documentário anunciado como uma livre adaptação do romance de Virginia Woolf. No livro, Orlando é um jovem nobre do século 16 que um dia acorda com um corpo de mulher. Durante mais de três séculos (além de experimentar as dores e delícias dos dois sexos, o personagem é também imortal), Orlando observa as mudanças do mundo e as cambiantes fronteiras entre o masculino e o feminino desde um ponto de vista privilegiado.
O filme é narrado como uma carta de aggiornamento à escritora, mostrando como vivem os Orlandos do século 21. Misturando trechos do livro com relatos de pessoas trans e não binárias de diferentes gerações, Orlando, Minha Biografia Política embaralha as fronteiras entre ficção e realidade, ativismo e reflexão, comédia e papo cabeça. O resultado é uma obra de gênero indefinível que comove e diverte o espectador ao colocar em primeiro plano a profunda humanidade de cada um de seus personagens.
Na contramão da arte, uma das armas da extrema direita é a desumanização. Faz parte desse tipo de estratégia mobilizar a emoção dos eleitores com argumentos falaciosos e apelativos sobre temas sensíveis. No Brasil, a pauta bicho-papão é o aborto (muito mais do que qualquer outro assunto que o STF ou o Congresso venham a debater). Nos Estados Unidos, além do aborto, já foi direitos civis, legalização da maconha, casamento gay. Como a maioria dos americanos mudou de opinião sobre esses assuntos ao longo das últimas décadas, a moda agora é demonizar pessoas trans. Sob o argumento falso e populista de "proteção das crianças", os Estados mais conservadores do país estão banindo ou limitando: livros, tratamentos médicos, uso de banheiros públicos, participação em esportes, aulas de educação sexual.
Para a extrema direita americana (e seus papagaios no Brasil), é apenas mais um bicho-papão na guerra cultural. Para todos os Orlandos que lutam pelo direito de ser e aparecer, é apenas a própria vida.
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