Escrevendo em cédulas
Estamos num sistema monetário controlado por Pix e cartões de crédito. Só os mais velhos recordam que, nos anos 1980, com o predomínio da moeda de papel, uma forma contundente de dar um recado era escrevendo nas cédulas.
Elas eram passadas adiante com uma declaração de amor, ou um insulto ao governo militar, ou um protesto a favor de eleições diretas, ou um agradecimento a um santo que atendeu a uma causa impossível, ou um apelo desesperado por reconciliação, ou uma propaganda rudimentar de uma cartomante.
Na falta de um papel para anotar um telefone de urgência, valíamo-nos do espaço em branco e da efígie de alguma cédula na carteira. Escrevíamos na cara de Carlos Drummond de Andrade, de Juscelino Kubitschek, de Machado de Assis, de Cândido Portinari, de Carlos Chagas, de Rui Barbosa, de Oswaldo Cruz, de Heitor Villa-Lobos, da Princesa Isabel.
Tinha um quê de insubordinação, de desabafo, de molecagem no bem mais valioso da época, o equivalente a uma pichação em miniatura. Até porque é crime de dano qualificado rasurar ou destruir dinheiro, patrimônio da União.
Como não se podia jogar fora a nota, ou simplesmente apagar os dizeres, representava uma maneira gratuita de expor a sua opinião. O cobrador de ônibus tinha um verdadeiro livro em seu maço de notas. Lia-se a grana.
Ela envelhecia de mão em mão, diferentemente da atualidade, em que mal circula. Existia, inclusive, um pronto-socorro doméstico, quando a nota puída, desmanchando-se em pedaços pelo uso constante, acabava sendo colada com durex ou esparadrapo.
Lembro que uma vez morri de vergonha. Fui ao açougue a pedido de minha mãe. Ela controlava rigorosamente a devolução do troco para que as crianças do lar não gastassem à toa com balas e chicletes. Quando eu retornei, ela me perguntou, como de praxe:
- Teve troco?
Não dava para mentir. Dei, então, a nota de 50 cruzeiros que havia sobrado (o equivalente a seis reais hoje). E nela estava anotado aquele conhecido palavrão "filho da?". Ela me questionou: - Como vou carregar essa nota na carteira? Se precisar comprar algo no trabalho?
Eu respondi: - Não tem problema, eu não me importo, dá para mim! Minha mãe me ofereceu a quantia para se livrar de futuros constrangimentos. Foi uma bendita gorjeta suja.
A partir daquele momento, meus irmãos e eu realizamos um plano maquiavélico: começamos a escrever os desaforos mais cabeludos nas notas que ela tinha em sua bolsa. Tudo para garantir novas doações. Não chegamos ao ponto de falsificar dinheiro, mas estragamos grande parte dele para o incremento da mesada.
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