02 DE OUTUBRO DE 2023
CARPINEJAR
Renovação do luto
Você somente descobre que sua carteira de motorista venceu porque alguém notou, nunca é por sua memória e iniciativa. É sempre informado por um terceiro quando já expirou a data e tem que contornar o prejuízo.
Foi o que aconteceu comigo. Apresentei o meu documento com foto numa loja de roupa e o vendedor apontou para a validade que havia caducado. Depois de pagar o boleto errado do Detran, ir atrás do estorno, quitar o certo - porque o simples para mim costuma ser complicado -, apareci para o exame médico numa clínica conveniada.
O médico se mostrou loquaz, apesar de seus óculos de aros finos e a barba grisalha indicando sisudez. Disse que me conhecia de algum lugar. Deveria ser da TV, mas ele imaginou que fosse de uma consulta anterior. Não desmenti.
Perguntou qual a minha ocupação. Respondi que era escritor. Em seguida, questionou qual tipo de livro eu escrevia. Avisei que era de comportamento e que o mais recente trazia reflexões a respeito da perda. Ele parou de revisar o meu questionário com dados pessoais e concluiu:
- As pessoas sofrem mais do que deveriam. Precisam virar a página. Morreu, morreu. É para chorar por alguns dias e erguer o rosto sem arrependimento.
Eu não concordava com ele. No meu entendimento, o luto é para a vida inteira. Você ajeita a dor, não há como mandá-la embora. Aliás, considero um completo desrespeito ao enlutado apressá-lo a se recompor imediatamente, coagi-lo a seguir em frente enquanto seu coração ainda anda para trás.
Mas não estava em posição de contrariar o médico. Dependia dele para a renovação da CNH. Eu me censurei em pensamento: "não compre briga, não discuta, apenas escute e siga para casa!".
Respirei fundo, e ele emendou: - Quando meu pai morreu, eu tinha 21 anos. Lamentei: - Meus pêsames. Ele não deixaria o assunto parado no ar. Prosseguiu:
- Tranquilo, não tenho nenhum problema com a morte. Ao voltar do velório e do enterro, tranquei-me no quarto para escutar música. Minha mãe me censurou porque não me encontrava triste, não chorava, e lhe expliquei que eu estava fazendo algo de que gostava. Entendi que tinha chegado ao fim o tempo do meu pai, e procurei me cercar de alegrias. O luto é um momento, não pode ser estendido para sempre. Vira chatice.
Eu não me aguentei, juro. Pedi desculpa mentalmente para Beatriz, minha esposa, que me aconselha a ficar calado nessas horas tensas. Assumi a bronca emocional e indaguei ao médico:
- De que seu pai morreu? Ele recordou: - De acidente de carro. Então acabei falando:
- Você não acha estranho que tenha vindo trabalhar justamente em admissão de motoristas? Seu luto não acabou, realiza sua função pela saudade de seu pai. Para salvá-lo todo dia a partir de outros condutores. Nem sempre as lágrimas escorrem, existem as lágrimas secas. Escolheu um jeito diferente e silencioso de prantear a sua dor.
Ele me encarou profundamente. Permanecemos em silêncio constrangedor. Já não sabia se eu renovava a minha CNH ou ele renovava o seu luto. Pensei que seria reprovado e me despedi.
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