26 DE JUNHO DE 2020
ARTIGOS - Médica, psiquiatra e psicanalista idetezbizzi@gmail.com
FÔLEGO CURTO
Não existe uma tonalidade para "ser humano", mas várias. Na versão mais prosaica, somos primatas, truculentos na busca por sobrevivência e perpetuação da espécie. Na versão mais evoluída, raciocinamos, sublimamos os instintos animais e formamos vínculos afetivos. A distância oceânica que separa o Homo sapiens selvagem do civilizado pode ser grosseiramente resumida em uma palavra: consideração.
Respeito às circunstâncias externas, registro de memória, capacidade de observação crítica nos são atributos únicos, no reino animal, mas nem por isso constituem habilidade corriqueira. Sob o vértice do desenvolvimento mental, a psicanálise reconhece inúmeros entraves ao amadurecimento saudável. Segundo Melanie Klein, por exemplo, o bebê, em seu estado natural de fragilidade, é particularmente inapto a lidar com percepções da realidade externa e interna incômodas. Em sua fantasia, porém, a "realidade psíquica" pode ser moldada à revelia dos fatos, constituindo o que a psicanalista austríaca-inglesa chamou de "defesa maníaca". Empregando "controle, desprezo e triunfo", ao desconsiderar árduas percepções, o lactente é transportado, do sentimento de pequenez original frente às circunstâncias, à fantasia de grandiosidade, da percepção de impotência à sensação de onipotência.
Presente nos primórdios da vida, esse mecanismo é estruturante e datado. Alçado ao funcionamento de grandes comunidades, porém, a recusa e distorção ilusória dos fatos reais, como o atual descontrole da pandemia de covid-19 em solo brasileiro, constitui mórbido descaso à vida e à ética humana. Uma nação que não se pauta por evidências científicas, no século 21, e que alimenta a negação maníaca de seus cidadãos é assombrosa e distópica.
Um governo que, mais do que isso, tenta manipular evidências, é um governo perverso. Entre o mar e a rocha, a população brasileira fica à deriva, buscando a bússola do bom senso empírico e intuitivo. A quem é dado escutar e enxergar, não escapa a percepção de que inúmeros cidadãos se evadem ao uso de máscaras em público, indiferentes à consideração ao próximo. Acéfalos e à deriva, encontramo-nos, nessa jornada de combate ao vírus, empregando "meias medidas" e colhendo grandes perdas, exatamente no momento em que aqueles que têm se disposto ao distanciamento necessário, tolerando prejuízos físicos, emocionais e financeiros sérios, começam a perder fôlego.
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