29 DE JUNHO DE 2020
DAVID COIMBRA
Prazeres adiados
Um dos textos de que mais gosto do Machado de Assis é O Alienista. É um conto. Tenho-o em um volume intitulado Papéis Avulsos. Não é bom nome de livro, mas, bem, o que interessa é o autor, o nosso "Bruxo do Cosme Velho".
Nesse conto, Machado está no auge da sua narrativa irônica. A história flui fácil desde o início, não dá vontade de parar de ler. O leitor é capturado já na abertura do primeiro capítulo, "De como Itaguaí ganhou uma casa de orates". "Orate" é um desusado sinônimo para louco. Casa de orates, portanto, é aquilo que depois se chamou de "hospício" ou "manicômio".
O alienista é o médico Simão Bacamarte, um homem para quem só a ciência importa. Confira esse trecho do qual a malícia machadiana escorre por entre as vogais:
"Aos 40 anos casou com D. Evarista da Costa e Mascarenhas, senhora de 25 anos, viúva de um juiz de fora, e não bonita nem simpática. Um dos tios dele, caçador de pacas perante o Eterno, e não menos franco, admirou-se de semelhante escolha e disse-lho. Simão Bacamarte explicou que D. Evarista reunia condições fisiológicas e anatômicas de primeira ordem, digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha bom pulso e excelente vista; estava assim apta a dar-lhe filhos robustos, sãos e inteligentes. Se além dessas prendas - únicas dignas da preocupação de um sábio - D. Evarista era mal composta de feições, longe de lastimá-lo, agradecia-o a Deus, porquanto não corria o risco de preterir os interesses da ciência na contemplação exclusiva, miúda e vulgar da consorte".
Não é uma delícia?
Queria indicar O Alienista como leitura de isolamento social, mas farei mais: indicarei não um, e sim DOIS alienistas. Porque há outro O Alienista que pede leitura. É o romance do americano Caleb Carr. Não se trata de um livro novo, é dos anos 1990. A novidade é que a Netflix lançou, tempos atrás, uma série sobre esse O Alienista. Assisti, agora, nos meus dias de confinamento, e gostei demais. É uma história de mistério, sombria e densa, que se passa na Nova York do século 19.
Então, temos aqui três indicações: um conto, um romance e uma série, todos com alienistas oitocentistas.
No texto de Machado, seu alienista fica em Itaguaí. No de Carr, o alienista vai para Boston, onde morei, e de lá segue para uma cidade próxima, Newton, a fim de proceder a uma investigação.
"Enquanto passávamos pelas ruas de Newton, uma comunidade tão pitoresca e monótona quanto qualquer uma que se podia encontrar na Nova Inglaterra, comecei a experimentar a sensação desconcertante e familiar de estar acuado por ruas estreitas e mentes tacanhas, uma ansiedade que me consumira com frequência durante o tempo que passara em Harvard", relatou o narrador da história de Caleb Carr.
Conheci Newton. Fica perto de onde eu morava. É uma cidadezinha pitoresca, como descreveu Caleb Carr, mas não monótona. Pacífica, talvez. Monótona, eu não diria. As ruas são limpas e bonitas, as casas são elegantes. Os moradores, educados e sorridentes. Lá, no número 22 da Newton Center, ainda funciona o Tartufo, um dos meus restaurantes favoritos. É um italiano genuíno, que serve pratos que aproveitam os produtos típicos da região. O meu preferido era o ravióli de lagosta, que comia entre suspiros.
Eis, portanto, a quarta dica dessa crônica. Vá a Newton, conheça uma autêntica comunidade da Nova Inglaterra e jante no Tartufo. Mas esse, claro, é um prazer para depois da peste. Que estranho tempo, este nosso, de temores presentes e prazeres adiados.
DAVID COIMBRA
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