20 DE JUNHO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL
A CRISE E OS SONHOS
Oneirocrítica é o título do célebre tratado grego de interpretação dos sonhos, de Artemidoro de Éfeso (ou Daulis), do século II d.C.. Crítica, aqui, prende-se ao verbo krino, e significa discernir e aplicar critérios, ou seja, interpretar. A obra testemunha uma das culturas mais fascinantes do mundo clássico, a das relações entre história e sonho, em grego, oneiros. Para os antigos, a dimensão dos sonhos era parte do universo em que viviam, porém em contato com o espaço onde atuam as deidades e potências reveladoras.
Na visão panteísta, o mundo é todo sagrado, está interconectado e é prenhe de sinais que importa identificar e interpretar. Esse aspecto da mentalidade mítica produziu tanto a fortuna de adivinhos, interpretando entranhas de animais, voos de aves e movimentos afins, como uma sensibilidade muito aguçada para todos os sinais do mundo, fundamento de várias ciências, sobretudo a astronomia, a medicina, o direito e a história. E se as atividades mentais são parte do mundo, o que significam os sinais dos sonhos? Eis o que a Oneirocrítica tenta responder.
O tratado de Artemidoro examina tradições gregas, romanas e orientais, certa variedade de autores e muitos casos oníricos, entre os quais o sonho com relações sexuais com a mãe. Segundo o autor, neste caso importa não a ocorrência desse sonho, muito comum, mas em que posições dava-se o sexo, e o que poderiam significar. Seis séculos antes, Sófocles já apontara o assunto, na passagem da tragédia Édipo Tirano em que Jocasta responde ao temor de Édipo, então ainda identificado como filho de outra mulher (Mérope, esposa do rei Pólibo, de Corinto), e diz a ele: "Não temas, pois em sonhos muitos mortais já compartilharam o leito da mãe" (v. 980-1).
Essa passagem e o fascínio com o livro de Artemidoro foram parte da inspiração de Freud ao escrever A Interpretação dos Sonhos (1899/1900), a obra fundadora da psicanálise. Freud compreendeu que os versos de Sófocles apontavam para outra qualidade dos sonhos, como reveladores de desejos inconscientes, e estes, de traumas típicos da formação da personalidade, desde que saímos do útero materno. Eis o melhor encontro entre mito e literatura clássicos e ciência contemporânea.
A mudança súbita nos ritmos e estilos de vida, a angústia diante de ameaças trágicas, o peso do presente assombrando passado e futuro e a maior disponibilidade de tempo para o sono têm produzido nesta pandemia o fenômeno que está sendo chamado de "sonhos coronavírus": numerosos relatos de maior intensidade nos sonhos e pesadelos. Como isso é parte de um processo de adaptação diante da nova realidade, especialistas, atualizando a lição dos antigos e de Freud, recomendam procurar comunicar com o mundo desperto as visões dos sonhos, rememorando, anotando, conversando com pessoas próximas, ou realizando como arte as imagens desse mundo de fantasia misteriosa.
Em todo o planeta e particularmente no Brasil, muitos encontram despertos algo pior do que pesadelo, e querem logo voltar aos sonhos. Sonhemos e tratemos dos sonhos, pois deles provêm sinais para iluminar os desafios da vida.
FRANCISCO MARSHALL
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