sábado, 13 de junho de 2020



13 DE JUNHO DE 2020
LEANDRO KARNAL

OS DEMÔNIOS DE ANTIGAMENTE

A vida corria tranquila na pequena Loudun, no interior da França. A orgulhosa torre (Tour Carrée) da cidade já era velha de meio milênio quando os Bourbons assumiram a coroa. O cotidiano modorrento seria abalado por vários acontecimentos extraordinários.

Alguns anos antes dos fatos que descreveremos, foi nomeado um padre para a paróquia de São Pedro e com um cargo na vizinha igreja da Santa Cruz. Urbain Grandier era dotado de boa cultura, aparência agradável e um incontrolável impulso de seduzir mulheres. Suas boas relações políticas o livraram de algumas acusações graves de assédio às paroquianas.

O caldo começou a ficar mais denso: a região foi atacada por uma peste (1632) e crescia a tensão entre protestantes e católicos em torno de questões se a cidade deveria ou não manter seus muros, cuja demolição já tinha sido ordenada pelo cardeal Richelieu. Vamos acrescentar uma outra personagem: Joana de Belcier, descendente de uma pequena nobreza provinciana, dotada de um leve defeito físico na postura. Após fracassar em um convento beneditino, acabou integrando a ordem das irmãs ursulinas, em Loudon.

O lugar passa a viver estranhos acontecimentos sob a liderança de Joana, agora com o nome religioso de Joana dos Anjos. Tudo começou com a visão do fantasma do antigo confessor das religiosas. Depois, as freiras apresentaram ataques histéricos, gritavam palavras obscenas para um público escandalizado. As convulsões se multiplicavam, vozes estranhas saíam das gargantas das religiosas. O caso lembrava o precedente em Aix-en-Provence onde, igualmente, freiras ursulinas tinham sido infectadas por espíritos malignos, em 1611. Quase toda a Europa (protestante, inclusive) vivia um surto de "caça às bruxas", e a crença na existência real do demônio e sua ação maléfica unia intelectuais, reis e a população em geral.

Joana dos Anjos acusou formalmente o padre Grandier de ser o causador de todos os distúrbios no convento. O clérigo tinha um bom número de inimigos e tinha se pronunciado contra a decisão do cardeal-ministro de demolir os muros da cidade, aumentando o coro dos descontentes contra o Don Juan clerical. O espetáculo da possessão coletiva das freiras era, agora, um tema nacional. Diante de autoridades e interrogadores, as freiras rolavam no chão e gritavam blasfêmias.

Urbain Grandier foi preso e julgado. Apareceu um pacto diabólico, um documento concreto assinado por vários demônios e conservado até hoje nos arquivos franceses. Os crimes, claro, foram todos comprovados. No dia 18 de agosto de 1634, com uma multidão que excedia a população local, o fogo foi aceso em frente à igreja da Santa Cruz. O clérigo foi muito torturado e, como era esperado, encontraram-se pontos insensíveis à dor e ao sangramento no seu corpo, outro sinal evidente de que tinha selado um acordo com o Inferno. O agente de Satanás convertera-se em carne carbonizada. Restava a possessão do convento.

As freiras foram exorcizadas diversas vezes. O problema era a grande quantidade de demônios. Expulsava-se um e surgiam vários outros que diziam seus nomes e permaneciam no corpo das aflitas. Houve rivalidade entre as ordens. Os capuchinhos foram substituídos por jesuítas na luta contra as legiões. O exorcismo envolvia opiniões do cardeal Richelieu, dos juízes locais e do bispo. Lutava-se pelas almas das ursulinas, lutava-se contra a ação dos seres infernais e, acima de tudo, pelo triunfo do poder monárquico e católico sobre a região. O caso é tão envolvente que a própria Joana dos Anjos é levada à presença do rei Luís XIII e da rainha Ana de Áustria.

Um erudito e místico jesuíta, Jean-Joseph Surin, foi trazido para participar do esforço de exorcismos. Conseguiu expulsar ainda mais demônios, porém entrou em crise depressiva e descreveu que os demônios retirados do corpo das freiras vinham para o seu. O religioso desenvolveu tendências suicidas e descreveu como sentia uma entidade dentro dele. Em janeiro de 1665, morreu Joana. Seus anos finais foram marcados pela obsessão de virar santa. Imersa em afasia e penitências, marcada por estigmas pelo corpo, a popular freira do século 17 faleceu de complicações respiratórias. A 22 de abril do mesmo ano, o padre Surin também fechava os olhos definitivamente. Ele havia trocado uma forte correspondência com a exorcizada.

O caso de Loudon foi descrito como histeria coletiva, jogo político, esquizofrenia e fruto da "demonomania" moderna. Após o escândalo, os juízes passaram a acreditar menos em possessões demoníacas, como defendeu Robert Mandrou no controverso livro Magistrados e Feiticeiros na França do Século 17 (ed. Perspectiva). O jesuíta Michel de Certeau escreveu uma análise clássica: La Possession de Loudun, ainda sem versão em português. De Certeau também explorou a escrita mística do padre Surin, seu colega de ordem. Freud interessou-se pelas narrativas em texto de 1923. Aldous Huxley publicou o romance Os Demônios de Loudun, em 1952. O livro inspirou uma ópera de Krzysztof Penderecki. Jerzy Kawalerowicz fez um filme: Madre Joana dos Anjos. O inglês Ken Russell dirigiu Vanessa Redgrave e Oliver Reed tratando do episódio. A possessão inspirou o intelecto e as artes.

E os demônios? Ainda brilhariam em Salem, no fim do século 17. Depois iriam perder lugar para outras atrações. A histeria coletiva? Essa sobreviveu e ainda assombra governantes e juízes. Ah, se madre Joana dos Anjos tivesse internet... É preciso manter a esperança... e a sanidade.

LEANDRO KARNAL

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