27 DE JUNHO DE 2020
CLAUDIA TAJES
Que saudade do Brasil da Tieta
Se tem coisa que todo mundo concorda é que não há como sofrer de tédio no Brasil de hoje. E isso em tempos de se fechar em casa por conta da pandemia. Bem verdade que, se as pessoas saíssem menos, os números da contaminação não teriam subido tanto. Só para reforçar: fique em casa. E, se precisar sair, não se esqueça da máscara. Incrível a quantidade de criaturas que andam por aí com a cara ao vento, como se estivesse tudo normal.
Não está. E vai doer menos se a gente se resignar a aceitar esse novo anormal.
Voltando ao Brasil e à completa ausência de tédio que vivemos. Em um dia desentocam o Queiroz, escondido há mais de um ano na casa do advogado de você-sabe-quem. No outro, o ex-ministro da educação, com caixa baixa mesmo, que xingava e ameaçava geral, sai covardemente fugido do país. Resta esperar que não assuma o cargo no Banco Mundial com um salário de US$ 250 mil ao ano. Incompetência premiada em dólares, os brasileiros não merecem isso. Até a entrega desta coluna, a senhora Queiroz não havia sido localizada. Talento para se esconder é com o clã. E segue o baile. Tem muita coisa para acontecer nos próximos capítulos.
Em uma das zapeadas de um noticiário para outro, que o vício em notícias é outra marca desta época, acabei parando em uma cena de Tieta, a novela de 1989 que está bombando no streaming. É incrível como o Brasil de ontem era bem mais avançado do que o de agora. Se a Globo ou qualquer emissora exibissem no horário nobre de 2020 um programa com os temas tratados em Tieta, o mínimo que a gente veria era a fúria das redes sociais. Tudo em defesa dos valores da família, defendidos na novela por Perpétua, a irmã tão moralista quanto hipócrita da protagonista. Tieta, a novela, assim como o romance de Jorge Amado que a inspirou, fala de aceitação, solidariedade, generosidade, empatia, essas coisas todas que muitos pararam de praticar e, não contentes, passaram a condenar. Tudo em defesa dos valores da família.
Por coincidência, no final de semana passado, a atriz Betty Faria, hoje com 79 anos, deu uma entrevista falando sobre a reprise da novela que estrelou e sobre esse nosso momento de pouca humanidade, para dizer o mínimo. "Penso muito nesse Brasil que estou desconhecendo, com as pessoas divididas, se xingando. O Brasil da dona de casa que botou o filho da empregada no elevador para se livrar dele. O Brasil de um ?homem de bem? que não respeita a dor de um pobre homenageando o filho morto pela peste e derruba cruzes com raiva. O país andou para trás, as pessoas estão doentes para além da pandemia, inseguras, com medo. Por que tanto ódio? Esse Brasil atual me assusta".
Betty Faria foi uma mulher livre, que fez da sua história o que bem quis. Então, aos 72 anos, de biquíni na praia, sofreu um linchamento virtual nas redes. "Quem fez isso é atrasado, sem noção! Todo mundo envelhece. Falaram: ?Olha a velha?. São uns babacas, tenho até pena de quem pensa assim." Coerente com a própria biografia, e muito a propósito desse mês de junho que promove o orgulho da diversidade para tentar arejar certas cabeças, falou do papel que gostaria de interpretar: "A mãe de uma travesti ou transexual. Como são, psicologicamente e emocionalmente, as mães de filhos que passam por tanto sofrimento, preconceito e violência?".
Betty, que continua Tieta na forma de ver o mundo, disse que "a sociedade precisa gostar mais das mulheres". Fato. E também precisa gostar mais das bichas, das sapatonas, dos meninos que preferem balé a futebol, das meninas que preferem futebol a balé. De quem não é branco, de quem é índio, de quem tem deficiência, de quem não nasceu no centro. Das pessoas mais velhas, das pessoas doentes. Será que a gente consegue voltar a 1989?
Uma coisa é certa. No Brasil de 2020, o nome da novela não seria Tieta. Seria Perpétua.
CLAUDIA TAJES
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