31 DE MARÇO DE 2020
CARPINEJAR
Nem o enterro é poupado
Com o isolamento provocado pelo coronavírus, a maior privação é a proibição para se despedir de um amigo, a incapacidade de comparecer a um enterro.
Dói não completar o luto com os próprios olhos. Dói não poder acenar a alguém com quem nunca mais se encontrará na vida. Dói não poder sussurrar as últimas palavras.
Dói não poder agradecer a amizade. Dói não poder estranhar aquele rosto magro e pálido na porta de vidro, o corpo encolhido do fim, absolutamente irreconhecível, e comentar que não é a mesma pessoa.
Dói não poder encomendar a alma no papel de seda das lágrimas. Dói não poder bater palmas quando o caixão baixar à terra. Dói não poder homenagear a saudade com o traje escuro.
Dói não poder lembrar de alguma história em particular, uma anedota, uma frase espirituosa, para ser dividida publicamente.
Dói não ter poder nenhum de determinar o adeus. O vírus não vem roubando apenas a nossa presença, vem profanando valiosas e definitivas ausências.
Não existe desonra igualmente funda, remorso igualmente agudo quanto o de faltar no velório de um ente querido e marcante.
Nem a morte é poupada da quarentena, nem ela recebe uma trégua, um salvo-conduto, uma licença para ir e vir.
O contágio deveria pausar - congelando o vento da devastação por um momento - para que cada perda mereça um desfecho digno, uma saída barulhenta e concorrida capaz de rivalizar com os gritos de nascimento no parto.
Mas os enterros estão cada vez mais vazios, as ruas dos cemitérios cada vez mais cinzentas.
Sobram coroas de flores, escasseiam testemunhas para arremessar pétalas à sepultura.
Não há fila indiana seguindo os féretros. Não há procissão para extravasar o quanto o defunto fora amado, o quanto é insubstituível, o quanto foi determinante e influente nas escolhas dos presentes. Não há capela cheia para rezar de mãos dadas. Não há como dar os pêsames aos familiares desesperados pela lacuna inexplicável.
O coveiro estará sozinho tanto quanto o morto. A gaveta será preenchida com o cimento da colher, longe de nossa respiração atenta e plangente.
Não contaremos com nenhuma possibilidade depois de voltar no tempo. É mais um agora extinto dentro de nossa impotência.
CARPINEJAR
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