24 DE MARÇO DE 2020
LUÍS AUGUSTO FISCHER
Vivendo o futuro
Como todo mundo, estou em casa, fazendo coisas possíveis, com filhos e parceira. Saímos apenas para o essencial, compras básicas e uma caminhadinha em volta da quadra, bem cedo. Agora fica mais claro que as crianças vão ter ocupação com materiais enviados pela escola, de forma que uma parte do cotidiano fica mais nítida.
Nitidez, eis a palavra. Essa primeira semana de isolamento me deixou um tanto atordoado. Não que me falte o que fazer: muitos livros para ler, trabalhos para cumprir, contatos internéticos a fazer. O que não havia mesmo era nitidez - a nitidez dos prazos, por exemplo. Quanto tempo vai durar isso? Duas semanas? Dois meses? Quem vai definir? Quando vai ser possível definir?
Matutando nisso me lembrei de duas experiências que tive, anos atrás. A primeira foi um diagnóstico de saúde que tardou duas semanas. Primeiro houve o pânico - estou mesmo doente? Quem vai definir? Quando vai dizer? -, depois a espera até o resultado firme. Duas semanas.
Nessas duas semanas eu enlouqueci. Tenho ainda comigo um livro que li nesses dias. Sempre sublinho e anoto as leituras, mas esse livro é um escândalo: é como que eu precisasse sublinhar cada palavra, toda e qualquer palavra. A gente sublinha é pra destacar, mas ali, naquela leitura, eu destaquei tudo, quer dizer, eu não destaquei nada - eu não tinha serenidade de espírito para saber o que era importante. Fazer diferença, é disso que se trata.
Fazer diferença depende de hierarquia, e hierarquia depende da serenidade com que lidamos com o tempo, e aqui volto ao ponto atual. Naquelas duas semanas em que vivi suspenso, eu bloqueei, com muita força, qualquer menção ao futuro. Pensava num trabalho para entregar dali a um mês e bloqueava - não sabia se estaria disponível para trabalho. Pensava em filhos que queria ter e cortava imediatamente o desejo. Eu estava bloqueando o futuro que é parte do presente.
Agora estamos todos assim. Muitas das ilusões amenas que nos fazem esperar pelo futuro agora estão bloqueadas - das mais duras, como o destino da pandemia no corpo da gente, às mais singelas, como o andamento do campeonato gaúcho ou da novela.
Um presente espesso, intenso, pegajoso, é o que nos acossa agora.
LUÍS AUGUSTO FISCHER
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