segunda-feira, 16 de março de 2020



16 DE MARÇO DE 2020

DAVID COIMBRA

Só uma dona de casa

Dona Oraides morreu no sábado à noite. Ela era mãe do meu amigo Amilton Calovi, o Amilton Cavalo, que volta e meia cito por aqui. O Amilton, nós nos conhecemos desde a primeira infância. Uma tarde, eu voltava do colégio e ele estava ajoelhado no chão de areia batida de um terreno que ficava atrás das nossas casas, jogando bolinha de gude. Passei pelo joguinho meio distraído e, de repente, ele se ergueu de um salto e pôs-se na minha frente de mão na cintura, protestando:

- Tu chutou a minha joga! - Que joga? - Tu chutou a minha bolinha!

- Eu não! - Chutou! - Não chutei!

Chutou-não chutei-chutou-não chutei e, em um minuto, rolávamos pelo chão, trocando pernada e tapona e levantando polvadeira. Em meio à confusão, aproveitei-me de um vacilo dele e o gravateei. Ele estava imobilizado feito um salame, não ia conseguir sair daquele aperto.

- Tu desiste? - perguntei, gritando. - Tu te rende? - e pressionava mais e mais o pescoço.

- Me rendo! Me rendo! - ele gritou. Eu o soltei. E não é que o desgranido traiçoeiro me deu um soco?!?!

Foi assim que começou a nossa amizade para toda a vida. O Amilton se tornou um irmão e, por consequência, seus pais eram como se fossem meus pais também. Eles são do Alegrete, com nomes bem alegretenses: dona Oraides e seu Hormain. Meu pai, que também era do Alegrete, tinha um nome mais alegretense ainda: Gaudêncio. A la pucha!

Meu pai pegava touro a unha, seu Hormain faz versos e dona Oraides fazia bondades. Parece que estava sempre pensando em alguma coisa agradável para dizer para a gente. Quando me via, sorria, não lembro dela sem estar sorrindo, e abria os braços e o coração e amolecia a voz e dizia:

- Meu filho...Era sempre assim. Sempre uma delicadeza, sempre um carinho.

Dona Oraides era costureira e modista. Trabalhou na Guaspary, que era perto do terreno onde eu e o Amilton brigamos, e ajudava um costureiro famoso que havia no IAPI, o Roque, que fazia roupas para os jogadores de futebol, o Neca, o Carpegiani, o Falcão. Mas o que ela mais fez na vida, mesmo, foi cuidar dos filhos, do seu Hormain e de quem estivesse por perto, como eu. A dona de casa típica.

Talvez você ache uma trajetória por demais simples para merecer citação no jornal. Dona Oraides nunca ocupou cargo público, nunca foi eleita para nada, nunca foi famosa. A única coisa que ela fazia era o bem para as outras pessoas. Só isso. Só?

Ora, ora, o mundo não precisa de discursos, nem de teses, não precisa de certezas ou de grandes verdades, o mundo não precisa de façanhas, o mundo precisa de pessoas que fazem o bem para as outras pessoas. O mundo precisa de pessoas como dona Oraides, e ela se foi, e levou com ela um pedaço da minha infância, e um pedaço da bondade debaixo do sol.

DAVID COIMBRA

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