sábado, 21 de março de 2020



21 DE MARÇO DE 2020
SCOLA ENTREVISTA

"O sucesso dessa estratégia vai depender da adesão da população"

ENTREVISTA: JOSÉ GOMES TEMPORÃO, Médico sanitarista e ex-ministro da Saúde

Último ministro da saúde a enfrentar uma crise viral no país, o médico sanitarista José Gomes Temporão afirma que o sucesso da estratégia de combate ao coronavírus depende da adesão em massa da população ao lema nacional do momento: ficar em casa. Médico sanitarista, Temporão alerta para a dificuldade que vai ficar mais evidente nas próximas semanas, dada a diversidade social e cultural do Brasil. 

O alastramento da doença, segundo ele, se deu a partir de pessoas que voltaram de viagem para o Exterior. Mas com o avanço dos casos em direção às áreas mais pobres, haverá problema maior. Por telefone, do Rio de Janeiro, onde mora e se mantém em quarentena em casa, Temporão elogia a atuação do atual ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Condena, por outro lado, a postura negacionista do presidente Jair Bolsonaro.

Que paralelos o senhor identifica entre a crise do H1N1 e a da covid-19?

Existem diferenças significativas entre a situação de 2009 (e a atual). Foi também uma pandemia, também um vírus que sofreu mutação, mas as diferenças são expressivas. Em primeiro lugar, naquela época, o vírus que sofreu mutação era da família influenza, que é da gripe comum. É um vírus com muita capacidade mutagênica. Ele é transportado por aves migratórias do Hemisfério Norte para o Hemisfério Sul e, nesse caso específico de 2009, foi um vírus que circulava em porcos, adquiriu a capacidade de infectar humanos e aí começou a passar de pessoa para pessoa. 

A diferença em relação ao coronavírus é que havia medicamento: existiam dois que pudemos utilizar. E foi possível, em prazo muito mais curto já que era da família influenza, fazer a vacina. Temos, no Brasil, o Instituto Butantan, a nossa grande fábrica de vacina da gripe. A que vai começar a ser aplicada na segunda-feira tem várias cepas de influenza, uma delas é a H1N1, exatamente o vírus que circulou em 2009. É o contrário de hoje, que não temos vacina, e não teremos antes de um ano ou um ano e meio, e não temos nenhum medicamento que trate o coronavírus. Existem semelhanças, mas essas diferenças são importantes. O terceiro ponto é que há 11 anos a internet era outra coisa. A capacidade de disseminar informações e conectar as pessoas era menor do que hoje.

Vantagens e desvantagens?

A informação circula mais rápido, você pode ficar em casa e tem mais opções pela internet, via TV a cabo, streaming, mas também disseminam-se informações falsas com uma velocidade que naquela época não era possível.

Quais foram as lições que ficaram daquela crise?

A primeira é a existência de um sistema universal de saúde no Brasil, o SUS. Faz toda a diferença. Fez em 2009 e fará agora. Na primeira etapa, que é de contenção, quando o vírus é detectado em algum lugar - em 2009, no México; agora, na China -, o sistema de vigilância epidemiológica tem de ser de qualidade para impedir que o portador do vírus entre no país. Detectar as pessoas suspeitas, isolá-las e seguir os contatos delas para ganhar tempo e organizar o sistema de saúde para o momento seguinte, quando passa a haver circulação comunitária, de pessoas que não têm relação nenhuma com alguém que veio do ponto de eclosão da epidemia. 

Segundo, e há diferença aqui em relação ao momento que estamos vivendo: a autoridade sanitária máxima, o Ministério da Saúde e a equipe brilhante de técnicos que temos, e os técnicos das secretarias estaduais e municipais, fazem toda a diferença. São os condutores que orientam a população. Tem de haver coesão no núcleo dirigente do país em relação a isso. Infelizmente, não estamos vendo isso. O presidente da República tem assumido posições incompatíveis com a situação. É extremamente grave, porque passa imagem negativa para a sociedade. Ao invés de o presidente não só acatar como também reforçar as medidas defendidas pelo ministro da Saúde, ele tem, reiteradamente, descumprido e desprezado essas orientações. 

Ontem à noite (quinta-feira), fez uma colocação minimizando a situação: "Vão morrer umas poucas pessoas". Ora, um óbito é preocupante. O que me preocupa em relação a 2009 é que naquele momento houve total coesão do governo em relação ao enfrentamento e a gente conseguiu ultrapassar com brilhantismo. Em 2010, vacinamos 100 milhões de pessoas contra o H1N1 - metade da população brasileira. O SUS demonstrou muita capacidade. Deixemos o ministro Mandetta, que faz um trabalho muito bom, trabalhar.

Como o senhor avalia a atuação do Ministério da Saúde até agora?

De altíssima qualidade: coesa, séria, ouvindo especialistas, informando permanentemente, estruturando a rede. É claro, a população tem de ter consciência de que a gente vive em um país muito desigual e nos últimos anos aconteceram coisas que nos fragilizam. Vou chamar a atenção para duas: a perda de recursos com a emenda constitucional 95, que congelou os gastos sociais por 20 anos. Só de 2016 para cá, o Ministério da Saúde perdeu entre R$ 20 bilhões e R$ 30 bilhões de orçamento. Nessa emergência, o governo vai ser obrigado a liberar recursos que foram negados nos anos anteriores. A segunda fragilidade é o desprezo à ciência. 

Temos um governo que corta metade dos recursos para a ciência no momento que mais precisamos. E a terceira fragilidade, que complexifica o trabalho da autoridade sanitária, é a desigualdade social. Como é que vamos enfrentar essa situação em populações que vivem em condições insalubres, precárias de habitabilidade, com transporte público em condições ruins, renda familiar baixa, sem condições de tratar doenças crônicas? Estou me referindo aos grandes conglomerados urbanos, às periferias das áreas metropolitanas, como a de Recife, Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Belo Horizonte. Esses aspectos complexificam. Mas do ponto de vista do desempenho técnico e político do ministro e sua equipe, diria que é irretocável.

O governo reconheceu que não é possível testar toda a população. É muito ruim?

O ideal seria ter uma situação como na Coreia do Sul, onde testaram um percentual muito alto da população. Mas é uma realidade completamente distinta. Eles estão entre os maiores produtores mundiais de kits para diagnóstico. Puderam desenvolver rapidamente, estavam preparados para isso porque já tiveram a Sars e outras pandemias causadas por outros tipos de coronavírus em anos anteriores. A situação brasileira é totalmente distinta. A capacidade mundial de produção de kits é limitada. Você tem de utilizar critérios. 

O critério é que as pessoas com sintomas que justifiquem a ida ao serviço de saúde - sobre isso, é preciso ter clareza: se você está em casa, um pouco de coriza, uma febre baixinha, pode buscar orientação, o governo está oferecendo agora, inclusive, telessaúde para quem precisar -, as pessoas que têm sintomas como dificuldade respiratória, tosse intensa, febre, essas devem procurar o serviço. 

Devem ser testadas para a gente ter certeza de que esses que estão adoecendo estão positivos para o coronavírus. O critério é pragmático baseado na impossibilidade de testar todos. Claro que o Ministério da Saúde está fazendo o esforço de adquirir mais testes para que mais pessoas sejam testadas. Isso é bom, mas não haverá uma situação ideal em que todo mundo que precisasse ou quisesse testar pudesse ter acesso a uma quantidade gigantesca de testes.

O que o senhor acha que vai acontecer no Brasil nas próximas semanas?

Vai depender do sucesso da estratégia de mitigação que está em curso. Na primeira etapa, fomos bem, ou seja, impedir que as pessoas que vieram de fora disseminassem rapidamente o vírus. A estratégia de distanciamento social que estamos vivendo, com medidas como fechamento de shoppings, cancelamento de eventos e pedir que as pessoas fiquem em casa é processo complexo porque envolve questões culturais e coisas concretas. 

Recentemente estava vendo que numa favela aqui do Rio de Janeiro, a Rocinha, como se garante o distanciamento social onde as pessoas moram amontadas? São realidades sociais que vão exigir das autoridades outro tipo de decisão, inclusive com necessidade de apoio financeiro. De qualquer forma, a estratégia fundamental agora é reduzir a circulação de pessoas. O sucesso desta estratégia vai depender da adesão da população.

daniel.scola@zerohora.com.br 3218-6650

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