30 de dezembro de 2016 | N° 18728
DAVID COIMBRA
O Caso do Sorvete do Presidente
É nessa época de fim de ano que a gente compreende que Deus, Nosso Senhor, o Todo-Poderoso, Ele se preocupa, realmente, é com o WhatsApp.
A guerra na Síria, a fome na África, o desemprego no Brasil, nada disso importa para o Eterno. O que importa é você não quebrar aquela corrente de mensagens do Bem que lhe mandaram pelo Whats. Porque, se você quebrar, Deus vai ficar brabo e vai lhe acontecer alguma coisa ruim em 2017.
Em compensação, se você mandar a mensagem para 10 amigos, você ficará rico ou terá outra vez uma saúde de adolescente ou a Alinne Moraes ficará louca para pular sete ondinhas com você no Réveillon.
Eu repasso rapidamente todas as mensagens com corrente que me mandam. Vá que dê certo. O problema será ter Alinne Moraes para todo mundo.
Sou um otimista, apesar de tudo. E o “tudo” a que me refiro nem é a guerra na Síria, a fome na África e o desemprego no Brasil. São as ocorrências mais prosaicas, como a natureza das discussões brasileiras. Por exemplo, a marca de sorvete que o presidente da República come na sobremesa.
Segundo as “redes” e alguns colegas, Häagen-Dazs é muito caro para o presidente do Brasil. Precisamos economizar no sorvete. Se Temer preferisse Kibon, nossos problemas estariam resolvidos.
Houve quem argumentasse, para defender Temer, que Dilma gastava o dobro com comida. Assim, o debate se aprofundou. Já estamos teorizando sobre o prato principal.
Dilma, aliás, foi criticada porque tentou antecipar sua aposentadoria. Tornou-se notória a preocupação dela com a forma como sobreviveria depois de deixar a Presidência, tanto que sua principal aliada, Kátia Abreu, fez um apelo dramático aos senadores para que tirassem o mandato de Dilma, mas não seus direitos políticos. Assim, argumentou Kátia, sua amiga poderia ser eleita para um cargo, qualquer cargo, a fim de aumentar seus rendimentos mensais.
Dilma estava preocupada com seu salário, depois de ter sido eleita presidente do Brasil duas vezes.
Antes dela, Lula teve de pedir favores a amigos e a empreiteiros para usufruir de um sítio e guardar os presentes que ganhou no exercício do cargo. E, durante o mandato, foi criticado porque comprou um avião novo para a Presidência da República.
Do avião ao sorvete, passando pela aposentadoria, a lógica é a mesma. É a lógica da mesquinharia e da muquiranagem.
O presidente do Brasil tem, sim, de dispor de um avião só para ele, e o melhor dos aviões, e o sorvete há de ser o melhor sorvete, e ele não pode gastar um minuto do seu tempo preocupado com a maneira como viverá depois de se aposentar. Não porque o presidente seja o Lula, o Temer, a Dilma ou o Tiririca, mas porque o presidente do Brasil está trabalhando para todos os brasileiros, porque representa todos os brasileiros, porque seu cargo é uma instituição que tem de ser respeitada e cada segundo do seu trabalho é relevante para a nação.
Quando o jornalista revela a marca do sorvete do presidente não como curiosidade, mas como escândalo, está fazendo demagogia.
Quando o cidadão se escandaliza com a marca do sorvete, fomenta uma discussão que desviará as energias de quem teria de trabalhar para ele em assuntos muito mais importantes.
Quando o presidente criticado decide cancelar a licitação para a compra do sorvete, como Temer cancelou, mostra que foi atingido pela discussão, que perdeu o foco dos temas fundamentais e que está tão fragilizado a ponto de se deixar abalar por qualquer tacanhice.
O Caso do Sorvete do Presidente deu-me certo desânimo, nos estertores de dezembro. Mas, como disse, sou otimista. Acredito que estejamos em processo de evolução. Agora mesmo recebi uma corrente de WhatsApp prometendo dias melhores para os brasileiros em 2017. Vou repassar a mensagem para 10, não... para 20 amigos, como garantia. Ainda não discutimos se a escova de dentes presidencial deve ter cerdas macias ou duras, se o papel higiênico dever ter folha dupla ou simples, se os chinelos têm de ser Rider ou Havaianas. Ainda nos resta um pouco de dignidade.
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