24/12/2016 e 25/12/2016 | N° 18723
MARTHA MEDEIROS
Noel, quero pedir que a gente volte a morrer de morte natural. Só isso
Carta para Papai Noel
Nem acredito que estou escrevendo para um cara que não existe. Mas a vida anda tão louca que uma loucura a mais não causará assombro. Olá, Papai Noel. Beleza?
Nunca escrevi uma carta para você nem quando era criança. Eu contava quais eram os meus desejos para minha mãe, pois ela garantia que tinha os seus contatos e que faria a informação chegar até a sua casa, e eu a considerava uma mulher tão incrível e cheia de poderes que não desconfiava dessa história nem um pouquinho.
Importa é que dava certo. Ganhava o que pedia. Mas eu cooperava, claro. Nunca pedi coisas caras ou difíceis de serem encontradas. A realização de sonhos impossíveis sempre funcionou em contos de fadas, mas não me parecia praticável numa vidinha mundana em Porto Alegre, então tratei, desde cedo, de desejar coisas razoáveis e realistas, sem correr o risco de me frustrar.
Porém, o que venho pedir hoje não é razoável nem realista, então resolvi apelar para o método tradicional fantasioso, que jeito.
Posso chamar você de pai em vez de papai? Fica menos infantil.
Pai, o que eu desejo é... Não, melhor não chamar de pai, vai parecer uma oração. Meu pedido fará um sobrevoo pela Lapônia e não aterrissará em local algum, ficará vagando sobre as nuvens.
Noel (agora sim, bendita informalidade), quero pedir que a gente volte a morrer de morte natural. Só isso.
Não me olhe dessa maneira, eu sei que é Natal, Noite feliz, Jingle bell, não estou querendo estragar o espírito da festa, longe de mim, mas é que pensei, pensei, pensei e não desejo outra coisa.
Morte natural significa a gente morrer bem velhinho (bem mais velhinho que você, relaxe) por pane súbita. Puf. Nada de morrer de desastre de avião por ganância do piloto, nada de morrer por falta de atendimento médico porque o dinheiro que deveria ser aplicado na saúde está na conta de políticos safados, nada de morrer numa embarcação em alto-mar fugindo do próprio país por causa de terrorismo, nada de ficar em seu país e esperar uma bomba cair sobre sua cabeça, nada de morrer na frente da escola do filho ou no estacionamento de um supermercado porque a falta de policiamento transformou a cidade num faroeste, nada de morrer por falência múltipla do Estado. Chega desses abreviamentos estúpidos e injustos. Minha proposta: antes dos cem anos, fica proibido. Depois dos cem, passa a ser facultativo. Fechado?
Dá para imaginar a dimensão do meu estupor diante da precariedade da vida a ponto de eu, uma mulher séria, acreditar que você lerá essas mal traçadas e que nos trará, de presente, mais futuro. Mas, absurdo por absurdo, resolvi arriscar.
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