17 de dezembro de 2016 | N° 18717
DAVID COIMBRA
36 graus abaixo de zero
Hoje fez 16 graus abaixo de zero. Com o vento, sensação térmica de 36 negativos. Dentro da geladeira, estava mais quente.
Agora, pense que às 4 da tarde começa a escurecer.
Some as duas informações. Qual o resultado?
Sono. Tenho vontade de passar o dia na minha cama quentinha e acolhedora, até porque, outra noite, sonhei com a Alinne Moraes, e foi bom.
Note que o inverno ainda nem começou. O que será de nós em janeiro e fevereiro? Cristo.
Aula de Física
Você olha para fora e não diz que está tão frio. Os dias são belíssimos, ensolarados e azuis. Não há uma única nuvem acima dos telhados oblíquos. Isso pode fazer o incauto crer que a temperatura está amena. Ao contrário. Lembre-se das aulas de Física: o ar quente sobe e o ar frio desce. A ausência do teto de nuvens faz com que o calor eleve-se sem obstáculos e se perca na atmosfera. O céu limpo torna a terra ainda mais fria.
A força do caráter
Há quem acredite que temperaturas extremas fortaleçam o caráter do povo. Funcionaria assim: os trópicos são, por natureza, manemolentes. Manemolência vem de “Mané mole”, um tipo pachorrento, tornado preguiçoso pelo peso do calor úmido dos trópicos. Não por acaso, manemolência se transformou em “malemolência”, que, convenhamos, é muito mais mole.
Já os países de clima temperado seriam mais afeitos ao trabalho, porque o frio exige maior produção de energia, seja para aquecer ambientes, seja para aquecer o corpo.
Tem certa lógica. Mas e a Rússia?
A Rússia é um pouco brasileira, e poucos países são tão frios.
Dostoiévski e a praia
Talvez o que faça diferença seja COMEÇAR O ANO com um frio desses. Você já começa ensimesmado, ocupado com atividades intelectuais. O resto do ano seria decorrência do que se fez nos meses de inverno. Explicaria a vigorosa literatura russa. Dostoiévski não tinha praias ensolaradas para ir, ele não podia tirar um dia para vadiar, vestir um velho calção de banho e passar a tarde em Itapuã, vendo semideusas dentro de biquínis sumários. Não. O que ele tinha era o frio de 40 graus abaixo de zero do inverno siberiano. Que alternativa lhe sobrava, a não ser escrever uma obra imortal, como Crime e Castigo?
Azar de Dostoiévski. Sorte nossa.
Sou gaúcho!
Mas sou gaúcho. Não vou me achicar para esse friozinho. Ontem à noite, mesmo respirando minúsculas partículas de gelo, saí para jantar fora.
Não é possível você ficar mais de um minuto na rua se não estiver a caráter: meias da espessura do dedo indicador, botas forradas, humilhantes ceroulas entre a cueca e a calça, camiseta “warm”, camisa, blusão e, sobre tudo, sobretudo. Ou casaco de esquiador. No pescoço, manta; na cabeça, touca. Orelhas bem protegidas, nariz coberto pela manta, luvas pesadas, só os olhinhos de fora.
Tem de ser assim, não há outro jeito. Você anda com dificuldade debaixo de tanta roupa. E as mulheres, tão despojadas no verão, saem por aí quase que de burca.
Pois bem, era como estava. Fui ao Eataly, jantar com uns amigos. Eataly é uma mistura de “eat”, comer, com “Italy”, Itália. Existe aqui, em Nova York, Chicago e São Paulo. É um espaço com todo tipo de comidas italianas vendidas prontas, em restaurantes e cafés, ou para preparar em casa, em lojas especializadas.
Eataly
Foi no Eataly que vi aquela moça. Estava paramentada como todos nós, prudentemente agasalhada com botas e casacão. Havia parado em frente ao espelho lateral de uma loja, e tinha nas mãos uma touca de lã. O que me chamou a atenção era como manuseava a touca. Cuidadosamente, ela dobrou as bordas e a esticou. Mediu cada gesto e levou-a vagarosamente à cabeça. Assestou-a no crânio, sempre mirando-se no espelho. E, depois, puxou de dentro do casaco uma cabeleira dourada que lhe caiu pelas costas. Foi um gesto bonito, de leoa com juba.
Admirado, deixei-a em frente ao espelho, e me fui. Mais tarde, a vi outra vez. Já estava indo embora, e ela passou. Passou dentro de toda a roupa que a protegia e debaixo da mesma cabeleira de ouro que havia liberado na loja. Notei, então, que ela não era ignorada. Homens e mulheres a observavam. Com discrição, é verdade, mas a observavam. Ela caminhava com segurança, diria que até com orgulho. Percebi que era a cascata de luz de seus cabelos que lhe dava a confiança.
Ela não podia mostrar as longas pernas, nem o contorno das nádegas, nem os ombros lustrosos, nem a barriga pétrea ou o pescoço elegante. Estando na rua, até os lábios haveriam de ficar cobertos. Mas ela lançou os cabelos ao ar. Só isso. E já encantou o dia. O inverno mais rigoroso é quente, diante do poder de certas mulheres.
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