sexta-feira, 9 de dezembro de 2016



09 de dezembro de 2016 | N° 18710 
CLÁUDIA LAITANO

Atravessando o tango

Cresci vendo Hitchcock como um velhinho bonachão que gostava de aparecer de relance no começo dos filmes que dirigia. Adulta, tive uma epifania estética assistindo pela primeira vez no cinema a Um corpo que cai (1958) – filme que recentemente desbancou Cidadão Kane (1941) no topo do ranking das obras-primas mais amadas pelos críticos. Há algum tempo, veio à tona o fato de que Hitchcock, além de gênio, era cafajeste. 

Não apenas dava em cima das atrizes como perseguia as que não lhe davam assunto. Fui obrigada a rever minha fantasia a respeito do velhinho bonachão, mas não o que sinto e penso com relação aos seus filmes. Que a história julgue os homens, que o mérito defina o destino da arte.

Corta para 2016. Uma frase de Bernardo Bertolucci colocou em chamas a internet nos últimos dias. Em uma entrevista antiga que voltou a circular, o diretor italiano admite que se sente culpado pela forma como tratou Maria Schneider (1952-2011) durante as filmagens de Último tango em Paris (1972), principalmente por não ter combinado com a jovem atriz todos os detalhes da famosa “cena da manteiga”.

Uma declaração a respeito de uma sequência testemunhada por toda a equipe de filmagem (alguns ainda vivos e atuantes) foi interpretada equivocadamente como uma confissão pública de violência sexual. A própria atriz costumava referir-se ao episódio em outros termos que não estupro ou abuso sexual – e sempre no campo profissional, como algo desconfortável imposto à personagem, e não a ela. Em resumo: um diretor idiossincrático, mas que agiu às claras, foi confundido com um diretor canalha, como Hitchcock, que tirava proveito da própria posição para coagir e impor-se sexualmente.

Se vamos debater gênios abusivos, como parece ser o caso de Bertolucci, sentem, que a conversa é longa. No cinema, no teatro, na música, na pintura, na literatura são muitos os exemplos de criadores que, em nome da arte, cometeram atos moralmente condenáveis ou discutíveis, seja empregando violência psicológica e/ou física para alcançar determinado efeito, seja usando episódios da vida alheia como matéria de inspiração. O sofrimento de uma pessoa vale uma obra-prima? Eis uma questão tão boa, que vem sendo discutida desde os tempos das pirâmides.

O que assusta, no caso Bertolucci, não é que algumas pessoas acreditem que o diretor passou dos limites, mas que o tribunal da internet tenha julgado seu comportamento a partir de informações incompletas ou falsas, apimentadas por títulos chamativos e ampliadas em escala global sem a devida preocupação com o esclarecimento dos fatos.

Se um episódio testemunhado por várias pessoas gera esse tipo de ruído, é de se imaginar quantas opiniões assentadas em terreno movediço têm embasado as mais ardentes convicções com relação a temas que impactam bem mais diretamente as nossas vidas.

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