sábado, 3 de dezembro de 2016



03 de dezembro de 2016 | N° 18705
PALAVRA DE MÉDICO | J. J. Camargo

As dúvidas que fingimos

A BUSCA PELA IMORTALIDADE é tão antiga quanto a certeza de que morreremos

A doença como ameaça e a morte como concretização do fantasma são temas tão inquietantes, desde sempre, que exercem um fascínio irresistível nos escritores que, manejando ficção ou realidade, descobriram nelas um veio inesgotável de emoção. E se servem deste filão emprestando-lhe inspiração e sensibilidade, ingredientes indispensáveis aos operários da palavra.

Aliás, tendo a palavra como instrumento em comum, escritor e médico usam-na à exaustão como ferramenta de criação estética de um e arma de consolo e solidariedade do outro.

Além disso, a quantidade de médicos que conseguiram destaque na literatura atesta o papel da emoção como um recurso sedutor na captação de novos e intangíveis leitores.

Alguns, mais escritores do que médicos, mas tendo a medicina como lastro e assoalho, se deram ao luxo de criar estilos que impactaram na literatura pelo brilhantismo e pela criatividade. Claro que estava pensando em Guimarães Rosa quando escrevi este parágrafo. Mas outros, como Pedro Nava, Moacyr Scliar e António Lobo Antunes, com textos singelos e diretos, foram igualmente encantadores.

Preparando uma conferência na Academia Nacional de Medicina sobre essa interface, deparei com uma população especial: escritores leigos abordando temas médicos da maior densidade emocional, com uma precisão e, às vezes, uma contundência nunca reportadas pelos profissionais do ramo.

A descrição do sofrimento emocional de Ivan Ilitch, devastado pela dor física da doença terminal e pela sensação de abandono multiplicada pela distância da família que misturava negação com otimismo mentiroso, e dos médicos que falavam um idioma que ele não entendia, é mais do que uma obra-prima, é o transporte do leitor para dentro do sofrimento do pobre homem, e compartilhado pela genialidade inconteste de Liev Tolstoi.

Quem não leu As intermitências da morte, de Saramago, terá apenas uma pífia ideia do assunto quando opinar sobre a naturalidade da morte. Ele concebeu um país onde, por um decreto imperial, a morte estava banida. Depois de uma euforia inicial, começaram os problemas. Primeiro, o que fazer com os agentes funerários, definitivamente desocupados. 

Depois, com os hospitais soterrados de moribundos, proibidos de morrer, mas não de adoecer. A situação vai se agravando até chegar no seio da família que, depois de um tempo, percebeu que o cuidado extremo dedicado aos seus amados não serviria para trazê-los de volta à vida útil e, sendo assim, talvez fosse preferível que eles simplesmente morressem para que a rotina plena dos saudáveis pudesse ser retomada.

Ninguém descreveu com tal brilhantismo o dilema afetivo em que a dor da perda e a exaustão do sofrimento se encontram e se digladiam. E a inexorabilidade da morte é a única vencedora possível, mesmo que a busca fantasiosa pela imortalidade seja tão antiga quanto a certeza de que morreremos. Por pura conveniência, tratamos a única certeza como se houvesse dúvida e trocamos a racionalidade do “quando” pela estupidez do “quem sabe”.

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