24/12/2016 e 25/12/2016 | N° 18723
ANTONIO PRATA
A PESTE AZUL
Um de nós elogiou o hambúrguer, o outro comentou sobre as carnes que tinham surgido nos últimos anos, o papo evoluiu pras técnicas de engorda do gado (no pasto ou em confinamento), o termo “confinamento” trouxe um certo desconforto com nosso hambúrguer e o Fabrício falou “Ah, vamos mudar de assunto, minha vida já é complicada o suficiente, não quero agora, no dia 20 de dezembro, ter que começar a sofrer por todas as vacas do mundo”.
Ficamos um tempo em silêncio, foquei no hambúrguer, na tarde ensolarada e nas pessoas que, à nossa volta, também faziam daquele almoço de terça- feira uma minicelebração de fim de ano, embaladas por essa brisa que refresca dezembro, vinda ali de janeiro, conforme nos aproximamos do Natal. A garota do caixa, conversando com o garçom, deu uma risada. Um barbudo desembrulhou um disco de vinil. Um careca chegou numa mesa grande e foi recebido com pompa e circunstância: “Pereba! Pereba! Pereba!”.
Eu já estava quase ouvindo o mar quebrando na praia em algum ponto da Simão Álvares quando o Fabrício me trouxe de volta pro concreto: “A gente vive uma época muito religiosa.”. Concordei: “O terrorismo islâmico, a bancada da Bíblia, o Crivell...”, “Não”, ele me cortou, “Isso também, mas não tô falando de Deus. Agora tudo é religião. A religião vegana e a religião carnívora. A religião do carro e a religião da bicicleta, a religião da amamentação e a religião da cesariana, a religião da Lava-Jato e do ‘Volta, Dilma!’, todo mundo é fanático e, se você discorda um tiquinho, você é um herege que tem que ser bloqueado da vida da pessoa, que nem no Facebook”.
Quando ele acabou de falar, lembrei do filme O sétimo selo, do Bergman. O Facebook me pareceu muito semelhante à Europa do século 14, devastada pela peste negra: cada post uma cruz erguida por um messias instantâneo, pequenas seitas de “likes” e “comments” atrás, vagando pelas planícies azuis das timelines, comungando a iluminação do dia. “Goiabada no temaki, não!”, “Se o seu filho usa fralda descartável, você é um assassino de golfinhos!”, “Eis aqui o que eu acho sobre o prepúcio nojento do terceiro pinto no clipe ridículo da Clarice Falcão”. Uma diferença pras seitas do século 14 é que nas mídias sociais os chicotes são raramente usados para a autopenitência; costumam castigar mais o lombo alheio.
Antes da sobremesa já estávamos enredados na velha discussão de boteco do século 21: a humanidade sempre foi esse lixo, e as redes sociais só revelaram o chorume, ou o ódio e a intolerância aumentaram nos últimos anos? Não sei, mas tenho a sensação de que colaborou pra pindaíba termos parado de engordar as crianças soltas nos pastos e passado a criá-las em confinamento: escola, condomínio, inglês, clube, iPad.
Em 1985, quando ainda existia uma instância muito louca, libertária, diversa e apartidária chamada “rua”, eu passava uma hora no amigo judeu, outra na casa da amiga com a avó janista, comia sal no baio macrobiótico e bebia no açude de groselha Milani. “Tolerância” não era um conceito ensinado na escola, mas um pré-requisito básico para você conseguir brincar de esconde-esconde com 15 crianças diferentes.
Olho a garota do caixa rindo com o garçom, o barbudo do vinil tomando sua cerveja, o Pereba contando uma história na mesa grande; faz sol lá fora e um jacarandá-mimoso estende sua sombra para dentro do restaurante. Não é possível que todo mundo se odeie tanto.
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