segunda-feira, 5 de dezembro de 2016


05 de dezembro de 2016 | N° 18706 
DAVID COIMBRA

O que há de ruim nas “10 medidas”

Meses atrás, estava no Brasil, caminhando por essa mesma Avenida Paulista que ontem foi tomada por manifestantes em protesto contra Renan Calheiros e a desfiguração das chamadas “10 medidas” pelo Congresso. Ali pela altura do Masp, uma moça me parou. Ela usava óculos e tinha uma prancheta na mão. Perguntou-me:

– Você quer assinar a petição em favor das 10 medidas contra a corrupção?

Desculpei-me: – Não, obrigado.

E ela, erguendo o queixo em desafio:

– Por quê? Você é a favor da corrupção?

Sorri e segui meu caminho.

Não ia entrar em debate com uma desconhecida, para isso serve o Facebook. Mas poderia lhe dar argumentos mais complexos do que ser “a favor da corrupção” para não assinar o documento.

Usei esse adjetivo, “complexo”, de propósito. O Brasil e o mundo ficaram mais complexos, tornaram-se múltiplos, e as pessoas continuam pensando como aquele filósofo do século 4º, o velho Maniqueu. Esse Maniqueu dizia que a vida se divide entre as forças do Bem e as forças do Mal eternamente em luta. Influenciou muita gente importante, inclusive Agostinho, que foi talvez o maior teólogo da Igreja Católica. Então, para os maniqueus, você está de um lado ou de outro. Do lado do Bem ou do lado do Mal.

Mil e setecentos anos depois, a turma ainda pensa assim. Deltan Dallagnol, o jovem procurador do Paraná, decerto que pertence ao time do Bem, e o escorregadio Renan Calheiros sem dúvida posa no time do Mal, mas às vezes Deltan está errado e Renan está certo. Isso é horrível. Vilões tinham de ser sempre narigudos, vestir-se sempre de preto, dar sempre aquela gargalhada maligna e estar sempre errados. E os mocinhos? Os mocinhos tinham de ter sempre ideias brilhantes e salvadoras. Só que, no maldito mundo real, as coisas são mais complicadas.

No caso das “10 medidas”, algumas são ótimas, outras são péssimas. Uma delas chegou a me assustar. É a que prevê “testes de integridade” para os funcionários públicos. Funcionaria assim: “espiões” do governo tentariam corrompê-lo. Se você caísse em tentação e aceitasse a proposta, seria punido. Ou seja: o Estado estimula a desonestidade e induz à corrupção, para depois reprimi-la. Você não é condenado por ter feito algo errado, você é condenado porque poderia fazer algo errado. É a presunção da culpa.

Credo.

Outra proposta estranha é a de não exclusão da chamada “prova ilícita”. O policial comete um crime para provar que você cometeu um crime, e a prova obtida desta maneira é aceita pelo tribunal. É mais ou menos o que o Trump pretende ao permitir os tais “afogamentos” em interrogatórios de acusados de terrorismo. Trump quer oficializar a tortura e o Ministério Público brasileiro quer oficializar o delito policial, ambos com o mesmo objetivo: o de dar aos investigadores acesso a métodos espúrios para que eles descubram o que não conseguem descobrir por métodos legais.

Por fim, uma das medidas restringe o habeas corpus, que é um dos pilares da democracia, a fim de manter o investigado preso quase que indefinidamente.

O Congresso rejeitou essas propostas, e acertou. E aí entrou em ação a solércia do Mal: com o pretexto de desbastar os excessos das 10 medidas, Renan et caterva apresentaram um projeto para punir “abusos de autoridade”. Na aparência, uma proposta humanitária. Na essência, uma tentativa de controlar a ação da Justiça. Justamente no momento em que eles, Renan e asseclas, estão sob a mira da Justiça.

Que situação, a minha. Ora estou do lado de Deltan, ora estou perfilado com Renan. Nem totalmente contra, nem incondicionalmente a favor. Tenho de ficar explicando e sei que a maioria não entenderá. Uma chatice. Preferia que fosse como colocou a menina da Paulista: aqui está o lado certo e lá o errado. Pronto, mais fácil, fico aqui e todo mundo gosta de mim. Era mais simples viver no tempo do velho Maniqueu.

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