sábado, 10 de dezembro de 2016


10 de dezembro de 2016 | N° 18711 
ANTONIO PRATA

  • NÃO E NÃO

    Assistindo a Nemo pela quinquagésima nona vez, meu filho enfia o dedo no nariz. “Não, filhote, dedo no nariz não pode!” Mal o reprimo e sou tomado por um desconforto.

    Alguns nãos eu digo com convicção: não pode mamar às três da manhã, não pode regar o aparelho da Net, não pode comer bola de gude, por mais que elas insistam em imitar lindas uvas ou jabuticabas. Essas não são proibições vazias: se meus filhos não tivessem só dois e três anos, eu lhes explicaria direitinho as razões.

    “Não pode mamar às três da manhã porque, se tiver tudo que quiser à hora que bem entender, você vai crescer achando que a vida é um Club Med all-inclusive e, quando o mundo começar a te negar todas as mamadeiras que inevitavelmente te negará, você vai ficar deprimidíssima e desorientada e vai terminar viciada em crack, em paçoca com Nutella ou coisa pior, tipo bingo – então abraça esse coelhinho e vamos dormir bem gostoso até amanhã, tá?”

    “Não pode regar o aparelho da Net porque ele é elétrico e vai causar um curto-circuito e talvez pegue fogo no prédio e embora eu entenda que você queira regar todos os objetos à sua volta com o regador da vovó Tuni pra ver se eles crescem ou florescem, melhor se restringir ao vaso de girassol. (Além do mais, te garanto por experiência própria que os botões do aparelho da Net não são do tipo que se abrem em flores).”

    “Não pode comer bola de gude porque embora o Homo sapiens seja onívoro, na ampla lista que inclui alface, boi, ouriço, ovo, alga, cogumelo e gafanhoto, não se encontra o vidro.”

    Com relação a enfiar o dedo no nariz, contudo... Convenhamos: eu, você, o papa Francisco e o Wesley Safadão enfiamos, só não saímos por aí, tipo, admitindo aos quatro ventos num grande jornal de circulação nacional. Para ser coerente eu deveria dizer: “Filho: dedo no nariz é uma coisa que todo mundo acha nojento nos outros, mas não em si próprio, de modo que todo mundo faz e não conta. Esse é um pacto silencioso da nossa espécie. Um segredo guardado pelos 7 bilhões de habitantes do planeta”.

    O problema de tal admissão é que ela me obrigaria a dar um segundo passo. “É o que chamamos de hipocrisia. Muito do que ensinamos a vocês é isso: hipocrisia. Quando a gente fala que tem que emprestar as coisas pros outros, por exemplo. Os adultos não agem assim. Veja: 1 bilhão de adultos têm um monte de coisas e 6 bilhões de adultos não têm coisa nenhuma, mas esse 1 bilhão não empresta as coisas, nem a pau. Quando a gente diz que só ganha sobremesa se comer brócolis, por exemplo, é outra tremenda hipocrisia. Ontem, o papai e a mamãe saíram pra jantar e racharam um cheesecake do tamanho de um jabuti depois de comerem x-salada e batata frita, bebendo cerveja. 

    Quando a gente diz que tem que falar sempre a verdade, então, é a maior hipocrisia de todas. A gente mente a torto e a direito. Se todos falassem a verdade, teríamos que admitir, por exemplo, que 1 bilhão de pessoas têm todos os brinquedos e não deixam os outros 6 bilhões brincarem, que a Gisele Bündchen põe o dedo no nariz ou que a mamãe do Nemo não está no trabalho, como sempre te digo, ela é devorada por um tubarão na primeira cena do filme, por isso toda vez nós começamos pelo minuto sete. Um mundo assim seria impraticável, não?”

    “Ei, Dani! Tira esse dedo do nariz. Isso.”

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