sexta-feira, 3 de julho de 2015



03 de julho de 2015 | N° 18213 
MOISÉS MENDES

O bico de 60 watts

Morelli, o escritor do Jogo da Amarelinha, de Julio Cortázar, reflete sobre a ancestralidade, os mortos e a perenidade de algumas coisas bem antigas enquanto caminha com uma vela acesa pela casa. Leva a mão à frente, para que o vento não apague a chama, e imagina quantas vezes esse gesto teria sido repetido pelos antepassados.

E pensa em coisas que se perderam, como a cômoda de cânfora e as trempes de ferro, as valsas dos anos 1920 e as polcas. Agora mesmo, Morelli poderia dizer que até as lâmpadas incandescentes de 60 watts vão desaparecer, enquanto as velas serão eternas.

Com o fim das antigas lâmpadas de 60 watts, desaparece um gesto. Não se verá mais alguém sacudindo uma lâmpada para saber se está queimada mesmo. Se estiver, o filamento de tungstênio estará rompido e não há o que fazer. Sem o filamento, uma lâmpada é apenas uma pera de vidro.

Você pode achar que eu me despeço da lâmpada agora aposentada sabendo tudo do tungstênio. Mas não sabia nada até ontem, quando fui pesquisar no Google o que era afinal aquela molinha que fica incandescente e dá sentido a uma lâmpada. Aquilo é o filamento. É feito de tungstênio, um metal do qual nunca tinha ouvido falar.

Quantas vezes ouvimos o barulho da molinha de tungstênio solta no vidro. Mas, em nome da economia, não há o que lamentar. Até porque a baixa duração das lâmpadas ultimamente nos faz concluir que havia uma queda na qualidade do tungstênio.

A lâmpada incandescente junta-se ao pneu com câmara, aos óculos bifocais com linha divisória para perto e longe, à galocha, à camisa de ban-lon e ao Orkut. Sobrevivem o saca-rolhas, a agulha, o martelo, o serrote, a pá, o garfo, a faca, o lampião.

Mas nada vai durar tanto quanto a vela, como a que Morelli acendeu só para experimentar as sensações da ancestralidade. Uma vela nos devolve à memória de tormentas, de conversas que só o escuro imprevisto retira dos cantos e dos cheiros que só o espalmacete tem.

Se você não sabe o que é espalmacete (que o dicionário diz ser espermacete), nunca entenderá o que o Morelli do Cortázar sentiu. Procure saber, porque daqui a pouco talvez não existam mais o Facebook, o smartphone e a lâmpada de LED, mas alguém andará pela casa com um toco de vela na mão.

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