12 de julho de 2015 | N° 18224
CARPINEJAR
Casal brigando esquece que tem filho
Quando estou numa discussão de relacionamento ainda me pego
guri, ainda me pego distraído. A mulher me pergunta algo simples e objetivo
berrando e me perco no ponto de interrogação, somente presto atenção no agudo
de seu timbre.
Ela questiona sim ou não, e rastejo indeciso num estado
meditativo.
Com uma caneta nas mãos, faço de conta que não é comigo. Já
me flagro tirando o canudo, reparando o estado da tinta, me desligo
completamente das palavras. Diante da voz levantada, as palavras não são mais
comigo, sou inteiro do silêncio.
É um estado de fuga que guardei da infância, no momento em
que meus pais brigavam aos gritos. O palco permanece montado em minha memória:
arrumados na sala, eu e os irmãos brincávamos de forte-apache enquanto
esperávamos para almoçar.
Tudo ia bem, os cabelos estavam penteados e a mesa posta. De
repente, a porta da frente batia, os lustres balançavam e a paz ia embora. Alguém
saía de casa correndo, talvez o pai, talvez a mãe, e um seguia o outro.
A discrição não frequentava o nosso endereço, envolvia
perseguição de carros, latidos desesperados no quintal, abraços histéricos e
empurrões confusos.
Descobria que não teria almoço, nem sessão da tarde, muito
menos tranquilidade.
A briga dava dois trabalhos: o de explicar aos vizinhos
durante toda a semana o que aconteceu e o de acalmar o coração que nunca sabia
ao certo o que estava acontecendo.
Eu me abstraía de propósito, recusando determinar se
correspondia ao fim do casamento ou uma reiterada tentativa do papai e da mamãe
de se entenderem e de serem felizes.
Os filhos desapareciam naquele instante para os pais, eles
realmente esqueciam que eram pais. Casal quando briga esquece que tem filhos.
Alheios ao que escutávamos e à nossa posição vulnerável no
front de batalha, retornavam para a sala, jogavam objetos nas paredes, soltavam
palavrões que jamais poderíamos repetir e se xingavam mutuamente, com energia e
disposição demoníacas.
Eu mexia cada vez mais no cocar de meu índio do forte-apache
e em sua machadinha marrom. Fingia que não existia, diminuindo de tamanho, até
me transformar num boneco e alguém me guardar na caixinha para brincar no dia
seguinte.
Fixo na caneta e vejo que não me defendo do medo de gritos,
apesar de adulto, apesar da paternidade.
Em vez de escrever qualquer coisa de útil, em vez de pedir
socorro, vou desmontando a caneta no meio de uma nova e inesperada gritaria
doméstica.
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