18 de julho de 2015 | N° 18230
CLÁUDIA LAITANO
Pai herói
Quando meu pai morreu, há exatos 15 anos, pensei em
registrar cada história que lembrava dele para que nada se perdesse. Seria como
uma coleção de retratos, uma cápsula do tempo para legar a netos e bisnetos – os
encarregados involuntários da missão de transportar seu nome, genes e memórias
para o futuro.
Redigi mentalmente muitos inícios diferentes. Começaria na
infância, nas lembranças mais antigas, os cílios dele roçando nos meus no
delicioso “beijo de olhinho” que eu repetiria mil vezes, anos depois, com a
minha própria filha? Ou tentaria reinterpretá-lo, como adulta? Como conciliar o
olhar da infância com a perspectiva da maturidade? E o que eu realmente sabia
sobre meu pai? O que um filho, qualquer filho, pode dizer sobre o pai sem falar
ao mesmo tempo sobre si mesmo?
O grande acontecimento literário do ano, nos EUA, é um livro
que traz à superfície algumas dessas questões. Lançado na última semana, Go Set
a Watchman, da escritora Harper Lee, 89 anos, retoma os personagens e o cenário
de To Kill a Mockingbird (no Brasil, O Sol é para Todos).
Escrito na mesma época, provavelmente antes, esse novo
romance autobiográfico tanto pode ser lido como uma versão inicial do texto
publicado quanto como um desdobramento da história narrada no best-seller de 1960
– em To Kill a Mockingbird, a narradora é uma menina, Scout (apelido dado pelo
pai), personagem que em Go Set a Watchman é a jovem Jean Louise, que retorna já
adulta para a cidade natal, Maycomb, onde revê o mundo da infância, o pai
inclusive, de forma totalmente diferente.
O que chocou os leitores americanos foi o desmonte da figura
heroica de Atticus Finch. O pai honrado e corajoso do primeiro livro, que
aceita defender um negro de uma acusação de estupro, nos anos 30, mesmo
enfrentando ameaças e o preconceito da pequena cidade, torna-se um velho acuado
e racista.
Qual o verdadeiro Atticus Finch? O do livro que Harper Lee
escolheu lançar ou este outro, que chega aos leitores quando já há dúvidas de
que a autora desejava publicá-lo? O Atticus que aprendemos a amar (no cinema,
com o rosto e a fortaleza moral de um Gregory Peck) fez sucesso exatamente
porque todos nós, adultos e crianças, precisamos construir heróis para admirar?
É possível amar sem admiração incondicional? Seremos cínicos demais, em 2015,
para acreditar em homens 100% íntegros? Todas essas dúvidas devem permanecer, a
partir de agora, atreladas para sempre aos dois livros que Harper Lee escreveu.
Não redigi o tal retrato definitivo do meu pai. Talvez
escreva um dia – não o relato definitivo, mas o possível. O certo é que a
imagem que tenho dele não ficou congelada naquela manhã fria de julho em que
nos despedimos com um beijo carinhoso, mas sem solenidade, como se fosse uma
terça-feira qualquer de inverno e não a última vez em que nos veríamos. A memória
do meu pai permanece e muda o tempo todo comigo – como a imagem do meu próprio
rosto no espelho.
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