12 de julho de 2015 | N° 18224
ANTONIO PRATA
Meia abdominal
Deito no banco de pedra, dobro as pernas, apoio os pés sobre
o assento, entrelaço as mãos atrás da cabeça, vou erguendo o tronco, devagar,
até que, no meio da abdominal, dou com o céu, lá no alto. É um desses céus de
inverno, no campo: limpo, azul, uma ou outra nuvem indo, sem muita pressa,
sabe-se lá pra onde, como as vacas no pasto, aqui embaixo.
É bonito, mas nem de longe é o céu mais espetacular que eu
já vi. Lembro do sol se pondo no mar de Itaúnas, na adolescência. (A bola de
fogo incendiando o Atlântico, e eu me remoendo, na areia: Beijo? Não beijo?
Beijo? Não beijei, pra variar – terminei a noite bêbado, enquanto ela se
atracava com o cara do violão.) Lembro de um azul quase escuro de tão claro,
sem uma única caspinha branca, emoldurando as laranjeiras, depois o castelo e
por fim um pico nevado, nos jardins da Alhambra, em Granada. (“Dê-lhe esmola,
mulher/
Que não há nesta vida nada/ Como a pena de ser cego em
Granada”, escreveu um poeta, em outro século, naquele mesmo jardim). Certas
tardes paulistanas, até, com seu horizonte pós-apocalíptico (se fosse uma cor
de esmalte, seria Abóbora Gotham City), são mais impactantes do que o céu que
encontro, no meio da abdominal, mas é o céu, ainda assim, em toda a sua
imponência: o mesmo céu que os gauleses temiam cair sobre suas cabeças e para o
qual bilhões de homens e mulheres erguem as mãos, todos os dias.
Eu, que nasci num mundo sem Deus e, contudo, repleto de
pecados – grelhados, assados, refogados, gratinados, flambados, condensados,
fermentados, destilados – não ergo as mãos, mas o tronco, em busca da redenção
corpórea, nessa manhã fria de julho. Ergo e logo desergo (se é que existe tal
verbo): as costas tocam a pedra, a cabeça já lá nas nuvens.
Quando eu era pequeno, em férias como esta, na fazenda,
gostava de deitar na grama, à noite, e olhar o céu estrelado até ter a
impressão de que não era ele quem estava em cima e eu, embaixo, mas o
contrário: com um frio na barriga, me sentia desabando no vazio. Deitado no
banco, agora, olho o céu por um tempo e me volta a impressão.
A vertigem é até maior, hoje, pois sei que não se trata de
uma impressão: estamos mesmo desabando no vazio. (“Assim será nossa vida:/ Uma
tarde sempre a esquecer/ Uma estrela a se apagar na treva/ Um caminho entre
dois túmulos”). Ah, mas não irei sem luta, poeta! Farei o que puder para
estender o caminho, por isso o ridículo shortinho de dry-fit, esses hediondos
tênis multicolores, essa quixotesca abdominal, no meio das férias.
Como eu disse, não é o céu mais bonito que já vi, mas
deitado no banco, é só céu o que eu enxergo: nenhuma copa de árvore, nenhum
cume de morro, nenhum fio de telefone, céu, céu, céu, de modo que não consigo
pensar em mais nada. Quase posso me ver, lá do alto, minúsculo. “Gabriel, que
que é aquilo, levantando e abaixando, ali pros lados de Piracaia? É um
muçulmano?”. “Não, Senhor. Tá de barriga pra cima. Tem mais pinta é de
abdominal”. “Ah, coitado”. “Coitado”.
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