07
de dezembro de 2014 | N° 18006
VIDA
INTERIOR | Diana Corso
A cristaleira
IMÓVEL USADO TRAZ consigo marcas, escolhas e
cicatrizes deixadas pelos antecessores
No
recinto vazio do apartamento recém-comprado, reinava ela. Reluzente,
portentosa, revestida de espelhos por dentro e laca brilhosa por fora. Não
contente com isso, a maldita cristaleira tinha um dispositivo de luz interna.
Aquele palácio iluminado de breguice parecia dominar minha futura sala. Móvel
imóvel, embutido, perfeitamente encaixada em um vão que parecia ter nascido
para recebê-la. Declarei-lhe guerra.
Sílvia,
minha arquiteta, acostumada com meus orçamento e bom senso limitados, suspirou
e ponderou que, então, teríamos de pensar algo para colocar naquele buraco,
quem sabe se lhe déssemos uma nova maquiagem? Venceu a falta de dinheiro e o
bom senso dela e hoje, em sua forma original, vivemos as duas em completa
harmonia. Por vezes meus olhos a encontram e, já uma velha amiga, me pergunto
como foi que lhe questionei a permanência.
A
cristaleira deixada pelos antigos donos do apartamento que comprei era, na
verdade, um patrimônio: bem feita, tinha a grande qualidade de estar já pronta.
Por que tirá-la? Fora o estilo bem diferente do meu, seu maior defeito era
atestar a presença anterior daquelas pessoas.
Imóvel
usado sempre traz consigo marcas, escolhas e cicatrizes deixadas pelos
antecessores. Ao chegar, a atitude mais comum dos novos proprietários é achar
tudo horrível, derrubar paredes, colocar abaixo banheiros e cozinhas em
perfeito estado, enquanto luminárias, pisos, trincos e torneiras são trocados
por modelos na moda. Há algo mais do que gosto pessoal que se revela nessa
renovação compulsiva à qual tendemos.
Ao
nascer, costumamos herdar várias cristaleiras, metaforicamente falando, mas
lutamos para ser originais. Pelo menos na própria existência queremos ser os
primeiros a chegar. Isso se reproduz nos imóveis que ocupamos, como se houvesse
uma contradição insolúvel entre a presença anterior e a nossa. Como na
cristaleira, tentamos suprimir seus traços para garantir algum ineditismo no
lugar que ocupamos no mundo. Na vida como no imóvel, grandes ou pequenos
embutidos das gerações passadas vamos carregar. Ficar completamente
contemporâneos na superfície não elimina a existência de raízes sob a terra.
Colocar tudo abaixo não resolve isso.
Somos
obrigados a caracterizar por escolhas pessoais, ou que se caracterizem pelo
“novo”, cada milímetro do nosso corpo e dos lugares que ocupamos. O problema é
que, além do desperdício de material, dinheiro e trabalho, lá onde julgamos
colocar um traço próprio, em geral estamos sendo escravos de modismos e
propagandas. A quebradeira apaga um acervo que testemunha alguma história, do
local, da família, de uma cultura, além de não garantir nenhuma singularidade
ao morador. Por que transformar o lindo parquê do nosso passado num frio
porcelanato sem nenhuma história para contar?
Diana
Corso é psicanalista e escreve quinzenalmente neste espaço, em rodízio com o
pesquisador Ronaldo Mota.
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